terça-feira, 30 de dezembro de 2008

"Paisagem II ou Recalque da corpo, recalque da terra"

que me seja privada a capacidade de conhecer toda a terra e assim superar os limites da espacialidade que em mim habita.

... à superação do limite de meu corpo.

(decerto que de enésimas formas ele é uma manifestação de uma espacialidade superior ao microcosmo de minha pele)

a megalomania herética ao princípio que me rege.

vencer a barreira do corpo é quebrá-lo
em tantos pedaços
quanto menos
posso contá
-los.

(de maneira absolutamente incompreensível, sinto minha corporalidade moldada em concordância com a terra)

meu espaço é o decalque da terra.

e
finitamente
vê-la confirma a realidade
a qual se forma
e se prende a mim:
a realidade temida.

vejo a terra como uma imitação de corpo,
que no ato de reconhecimento meu a sua essência,
se confirma e se firma
altiva e irrevogável.

vejo a luz incandescente com a turbidez de meu físico.

ouço o som com o oco de meu peito.

ouço a maciez da ausência de som como continuidade do meu grito no penhasco;
vácuo do coração da terra.

a voz se evanesce e se esvanece.
e me encanto por completo
na complacência e contemplação
do meu sumiço,
cada vez mais determinante
cada vez mais iminente.

que me seja privado o enunciado do corpo, e a anunciação do espaço.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

"Idioma"

a língua minha é corpo puro:

braço longo que
alitera corpo magro que
obnubila buraco no peito que
grita face forte que
reitera

...e a lingua tua é pura transcendência.

...e a alegra meu anticorpo
frente ao desmanche seu
que me despe e me emudece
e reduz meu verbo a anti-corpo
e meu corpo a sub-corpo:
sub-corpo do teu corpo.

(nossa semântica é de fins e inícios
mas não existe como tal
pois não finda e não se inicia
no comprimento da minha raíz mais íntima
nem na duração da morte pública mais minha)

minha origem
está num espelho
primordial
cada vez mais escondido
e recôndito.

...a chave de meu corpo lá se encontra,
encerrando consigo mesma,
o conceito de meu idioma mais particular.

domingo, 26 de outubro de 2008

"Paisagem Imaginária I ou Um novo significado pro verão"

se quiseres tu - num
dia quente no mediterrâneo,
ao léu das palmas,
de branco -
matar-me de amor,
que o faça ao céu
de casablanca.

bem no compasso,
faço o meu passo -
a paisagem imaginada
acalma os sentidos
dos erros que cometo -
samba selvagem,
na paisagem de casablanca.

trago não traço,
amanso o passo,
faço não caço,
amo o amor -
me caso com o sol
de casablanca -
fico manso de dor,
no dia de paz
de casablanca.


para Waly Salomão.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

"Paisagem I ou O frio que me fere"

o que vejo agora,
confunde sensações aos estímulos:

obedece a uma harmonia cubista
de um labirinto irreal,
o qual,
alvo como um cume de neve,
dissolve feito sal
sobre pedras
dum mar inacabado
e breve.

... o que diviso:
um barco
de tamanho indiscriminado

- mimetizado em meio à bruma -

navegando ao mar de cinzas
a esmo de si mesmo.

...num átimo de tempo,
o barco está ao mar,
mas o que se percebe,
nada mais é que:
um borrão branco.

... o fenômeno do barco,
demora para construir-se pleno.

pois o barco sou eu,
e eu me demoro na minha indecisão,
de navegar por ali, por aqui,
de navegar ou não.

sábado, 20 de setembro de 2008

"Espelho por detrás"

aqui discuto o espelho por detrás.

... pois é justamente o momento
de discutir a trivialidade
como resposta maior
à aflição:

por trás do espelho,
faz-se o nada,
nunca o dobro.

faz-se a parede,
não o reflexo.

faz-se o limite,
o limbo, o sem-Deus.

... e a duplicação e inversão da coisa é,
por via de regra,
demoníaca:

eu em dobro.
tu em dobro.
ele em dobro.

e(a extensão da coisa se dá
involuntariosamente)à parte
de mim,
de ti,
dele.

... mas a reflexão
é terra de ninguém,
somente daquele o qual
imensamente tentamos ser
sem chance dele sermos.

... neste sistema parcialmente isolado,
o angélico está na moldura,
e portanto, no signo
da reflexão.

...a qualidade de espelho é,
sempre será,
satânica.

...neste aspecto,
o espectro de minha poesia,
são diferentes tonalidades
de satanismo
e
de santidade.

esta encontra-se atrás do espelho,
pois é lá onde me situo:

me encontro atrás do espelho.

... e considerações exteriores sobre a vida por detrás do espelho,
olhar o que mais já foi escrito por mim aqui.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

“A caixa de Drummond”

“Carrego comigo
Há dezenas de anos
Há centenas de anos
Um pequeno embrulho”
C.D.A.



Havia uma caixa. Havia uma caixa, mas que não estava no meio do caminho, e sim, era ela o caminho. Em absoluto, este caminho é uma transição rumo àquilo que nos é desconhecido em todas as instâncias. É uma porta, objeto esse por completo mutável, metamórfico e mágico. Por trás da caixa-porta o que encontramos? Talvez o instante que será, mas que agora é, e em breve terá sido. Há um fluxo onisciente que, de rompante, atravessa a porta-caixa translúcida e que é o instante-já que é e agora era e nos atinge, secamente. Este fluxo já nos é conhecido a priori, acredito eu e tantos outros por aí. Além dele, também já nos é de conhecimento a priori o próprio material do qual a caixa-porta é feita. É algo terrivelmente próprio. Há nesta caixa, adianto-vos, algo indescritível. Portanto, o certo quando contemplamos tal objeto não seria fazermos deferência, idolatrar e contemplar aquilo mágico que ao passo que nos é conhecido, é desconhecido? E este mistério: como explicar aquilo que ao passo que conduz, confina? O mistério em si: é o conteúdo da caixa. A caixa possui o mistério. E a caixa é minha.
Seria então o meu mistério dentro da caixa, enfermo e sofrido qual as desgraças de Pandora? Talvez lá contivesse cores, das mais belas. Talvez lá contivesse A cor? Talvez um segredo? Não que o mistério necessariamente se remeta ao segredo, uma vez que somente o mistério emerso, flutuante, que erra na rasura de tudo, é o segredo. E caso fosse carne, carmesim e suculenta, como as delícias que nela habitam? E se a resposta para o conteúdo da caixa fosse a resposta de si mesma? Resposta: o conteúdo da caixa é... Simplesmente meu. E que jamais haja confusão entre o ter e o ser, neste aspecto tão intocado e albatroz. Porque mesmo dentro de meu mundo, de meu mistério, não admito onipotência sequer onisciência sequer qualquer vestígio daquele ser o qual foi extinto de minha vida. Aquele das letras maiúsculas. As letras maiúsculas, por motivo de princípios, foram expurgadas a tiros de canhão de meu mistério. A contemplação inerente à admiração limita-me a ignorar que a letra maiúscula seja motivo de força maior para adestrar minha paixão. Não, não escondi Deus dentro da caixa. Jamais me perdoaria por extinguir o Pai de todos a quem dele nasceram. Entendo da ausência paterna. E também entendo o quanto isso contribui para que este mistério seja apatriado.
Este mistério, por excelência, é iconoclasta. E para tanto, não devo jamais considerar-me ídolo, muito embora o confinamento, por trás da cortina de sua definição, carregue teor ególatra. Ignoremos isso e fingimos que dentro de minha caixa o universo seja um degradê ao inverso, de forma que o branco seja o preto, o tudo seja o nada, o eu seja o tu. Mas ainda assim, o mistério é meu. De mais ninguém, repito-o e louvo-o gritando aos céus: é meu e de mais ninguém! Gozo-o por inteiro e sequer o divido com meus devaneios. A princípio, dir-se-ia maravilhas da caixa. Uma caixa só minha! Poderia guardar o que quisesse lá dentro. Mas que poder era esse? Estava eu preparado quando de todos os corpos do universo tangível, escolhi justamente aquele que não lhe pertencia? Pergunto-me, olhando ao espelho: vivo na caixa a qual possuo? Vivo em meu mistério? Já lho sei: não o sou, ele é um outro, diferente de mim em essência. Seria possível eu habitar DENTRO de algo que não se pode tocar, tanger?
Independente de minhas questões, retorno ao mistério, que ao passo que é posse minha, é um caminho. Meu mistério é um caminho em direção a algo que não sei explicar. E ninguém o faria melhor ou pior que eu. É como se ele compusesse um corpo, longilíneo e lemniscato, que em si mesmo se envereda, se entrecruza e, num nó, o eleva a uma complexidade quase forjada, esse embuste-meu que, mais que tudo, confunde aquilo que por natureza deveria ser simples. Aquilo que não se explica é simples, mas não é assim que o sinto, e sinto muito por isso. E se caso eu, numa repentina epifania de esclarecimento, o entendesse de alma e carne? Saberia reconstruir-me frente àquilo que me destruiu? Conheci uma mulher que, sustentada somente com os dedos do pé, roçou os dedos no mistério próprio. Temo, assim como ela, destruir-me e me perder na reconstrução. Ou mesmo na construção.
Lembro-me agora de um de seus artifícios para tal: imaginar uma figura de auxílio. E se eu fizesse exatamente o mesmo? Mas por quê?! Por que eu estou buscando por auxílio se a caixa é minha, eu possuo a chave para adentrá-la, eu possuo os pés para andar pelo seu caminho, eu possuo a técnica de natação ancestral para ir de encontro ao fluxo que nele impera altivo e inflexível? Suspeito que este medo me seja primordial. Vou tomar um café. Tomo o café e ainda temo inexplicavelmente aquilo que não sei explicar. Não, não sei o que explicar. A situação abandonou a condição de engodo assim que a caixa se abriu e o fluxo passou, levando o instante-já tão necessário ao meu entendimento. Tentei pegá-lo do ar, do éter, mas não o consegui. E se meu auxílio viesse com o objetivo de parar o fluxo? Prestidigitador que sou, quebranto meu status quo em um trilhão de peças infinitesimalmente pequenas. Agora não obedeço mais a qualquer lei. Sou um anárquico equívoco mágico que, posseiro do próprio mistério, deixou-se levar por ele e se abandonou à desconstrução última: a própria. Estou livre de minha carne e de minha alma, e decido neste momento encarnar a forma de uma flor, de um áporo labiríntico, parasita. Que estranho essa sensação, esses sons, ressonância de atonalidade desconhecida. Pergunto-me agora (ou sempre me questionei?): estou no cerne da matéria?
Essência mutável que sou, abandono as rédeas de mim mesmo e alcanço o sumo de tudo. Bebo-o através da boca que não mais tenho mas que a crio como num estralo de dedos. Meus lábios se melam todos. Roçam neles coisas indescritíveis. E agora, tudo se acabou, eu bebi meu mistério, na tentativa de desvendá-lo. De uma forma ou de outra, isto estava para acontecer há milênios, eu, velho de 2000 anos de idade, já o previa e já me encantava distante de mim mesmo. Muito provavelmente, é o objetivo de todo ser ser engolfado em determinado momento de sua vida pelo seu próprio mistério. Este momento é o que antecede à descoberta de si mesmo, dado viciado que opera sob o signo da imparcialidade.
A caixa? Deixe-a para trás, não mais preciso dela. Ei-la, abandonada próxima de um rio, poluindo-o com seu fluxo de realidade.
A porta? Ei-la aqui, ali, ainda aferrolhada no seu batente, roída, destruída, vilipendiada. E assim permanecerá a partir de agora.
A água do rio poluída pelo fluxo o qual jorrava da porta-caixa? Eu a bebo, homem que sou, e me refresco nela sob a postura de alguém superior, transcendental, com o menosprezo de quem não a vê mais como mistério encantador, uma vez que já conheço sua estrutura íntima e ainda digo: “não és mais que resto”.
Não estou vazio. Não estou sozinho. Pois anda comigo. Algo indescritível.

"A escolha de si mesmo"

a mãe estirada debaixo da árvore
os toma pra si.

sobre a terra rachada,
toca seus seios, a inveja.

limpa,
o filho a examina,
condescendentemente.

atrás do espelho,
tornou-se sua mãe.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

"Catatonia do poeta"

... por ora,
o poeta está só de si mesmo,
pois sua língua,
e seu objeto,
naquilo que nunca houvera sido,
evanesceram, padeceram
em lágrimas expectantes.

... no momento,
tudo o que o poeta deseja
é, adversamente,
não desejar:
no seu desejo ao contrário,
encontrou a paz finamente bem quista.

estando só em si mesmo,
pôde conhecer parcela sua,
primordial e pulsátil,
a confundi-lo, torturá-lo,
com aquilo jamais feito
e jamais satisfeito.

a parcela-outra,
manifestando-se tesa,
tratou de mostrar-se
corporalidade relutante,
imersa e imensa,
a esconder-se incompleta.

... indiferenciado,
passivo de si mesmo,
seu próprio existir
regressou ao fino estado de ser.

o poeta se fechou para si mesmo,
dentro do espelho.

post scriptum

... e entretanto,
foi naquilo nunca sido
que o poeta encontrou,
por fim, seu estandarte.

post post scriptum

este escrito também poderia se chamar Ecolalia ao inverso ou ainda Ecopraxia de mim mesmo.

ambos me expressam.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

"Soror de minha alma"

I - morte


teu corpo a mim
fechado em dor,
me fez acordar
e ver a luz
brilhante
como mais
um artifício,
teu a me apear.

(rútila luz,
parte de ti
em direção a mim
-
a luz do céu;
cujos pesados raios
caem sobre mim)

... meu mundo, minha vida
fecham-se para mim
e não sou
mais...

(...eles abrem
sobre ti
e me abro
a seus desejos
como um campo de flores
- prelúdio nosso)

... e eu,
contando sóis
marcando cicatrizes
em meu rosto,
fecho meus olhos.

... tu fechas os olhos e eu morro.

(luminescência a trazer consciência)


II - reflexão acerca de ti


"tu foste algo de anjo,
algo de diabo,
a me irmanar,
com asas híbridas de humano.

e das flores do campo que és tu,
colhi as mais simples.

também benzi o bálsamo de tua pele,
e o espalhei sobre meu ventre:
vi teu resto a refletir
uma lua turva de perdas irreais e vazias

(lençol sem sangue, puro
- prova de intocável amanhecer -
exposto à luz do sol)

da tua lua,
descendeu a neve, demorada, a cair,
e soterrar meu amor entre pedras de gelo.

teus olhos negros foram eclipses
a me esconder de ti mesmo
na tua própria penumbra.

... houve teu sorriso,
desconexo no vazio que restou:
forma pálida de gozo.

mas sem ti não há amanhecer,
nem ascenção, nem flores.

... e para além do céu de seus olhos
escondem-se lá alguns lírios,
como mares evanescentes de neve:
águas-vivas cristais a esfuziar na luz pequena do dia.

teu mar provou-se um rio,
e nada mais.

... enquanto isso,
nuvens cruzam o meu céu,
enquanto flores morrem."


III - (re)nascimento


através de ruas altas,
banhadas pelo sol,
encontro-me caído e cambaleante.

banhado por neve a derreter,
sonho com um interminável prelúdio -
o outono.

quando me ergo e me lembro dos teus olhos,
de abissalidade negra,
de riquezas demais,
sinto-me anterior
ao nascimento:

ao te rever
meu coração é
nada mais
que uma borboleta estática.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

"O êxtase de Santa Teresa (ou Síndrome de Stendhal)"

longe da lânguida lâmina do dia,
faz-me só orgasmos, perdido amor,
estar frente a arte de Sua face.

...em prol de Sua admiração,
me cego, me revolto e me agracio,
escorraçado, invertido e tardio,
à Sua reticente expressão.

longe da lânguida lâmina do dia,
penso em Sua face como a de um homem,
e me apego à Sua beleza de homem
de sangue e penumbra vazia:

a
bombear pelo meu corpo de forma violenta,
preenchendo lacunas outrora permanentes.

a
tontear a insana compreensão
da minha realidade, tal qual como a recrio de ti.

a
confundir o resquício, restolho,
de mim em mim mesmo, após o corte da lânguida lâmina do dia.

... de faca fina e de pronto,
sou um tesouro recôndito,
incrustado na realidade em si própria,
permeado pela beleza de sentir,
adversamente, a alucinação
do prazer mais primordial.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

"Exploração por detrás do espelho"

olhando ao meu inverso,
e ao teu também,
só fiz ver divisão

entre o que é primórdio
e
entre o que é artifício.

... e passaste a ser
nada, nada mais,
que uma dinâmica
demoníaca

entre o que é superfície
e
entre o que é imanência.

penetrando na tua parte civilizada,
me cortando na lâmina de tudo,
entendi a divisão

entre aquilo que és
e
entre aquilo que tu mostras a mim.

fugindo do fenômeno de ti,
penetrei a fundo naquilo que és,
me enojei contigo
... e te vomitei,
e também em todos os teus símbolos
de superficialidade.

... olhando ao inverso de tudo,
pude sentir a inefável sensação,
de conhecer a coisa desvinculada,
desligada da semântica do desejo,
da vicissitude do sentido.

te conheci, finalmente, em/a ti próprio.

com o punho nu,
estourei o espelho,
meu sangue tingiu teus olhos,
mas não pude me esconder de ti.

o fantasma de ti em ti mesmo me sugou.

e doeu.

o eu de mim, portanto, passou somente a viver na palavra,
como todos assim sempre houveram.

... o que reclamo da amálgama,
a mágoa, a agonia,
do eu de ti ser
como nunca houvesse sido.

este texto é também um avião fugitivo,
clandestino.

... um avião para fora do reino no qual me prendi.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

"Minha morte"

me enterra,
e com ardor,
me conte a quem mais sobrar:
"indelével desanuvear,
do ventre para o limbo,
foi vivido sob signos de perigo,
e semeado em gozo de enlevo."

me encerra,
fortemente, em linhas de poesia -
e me cante somente para os trovadores
da canção estéril do futuro,
tramada e perdida,
para, contra e a favor,
desse sem-face que me assombra.

mas carrega-me então
para que, ao menos juntos,
possamos atravessar o junco,
a daninha erva,
o corpo fibroso e trincado,
a refestelar-se
na terra, dos amargos deuses.

atravessaremos os ardis -
abnegados trâmites -
e atravessando o leve e último véu,
contemplaremos, sob a benção de um deslumbre,
um estado de leveza de ser, finamente pungente.

... mas quando ficares
à volta de minha lápide,
reticente,
piscante,
assegure-te que comentarão
o quão turvo fui.

*

e enquanto eles se distanciam
em direção ao portão do cemitério...
amarrados permanencem às suas crenças,
questionando seus futuros enquanto carne,
à sombra de um ideal amor póstumo,
invólucro infeliz de vida,
todos intocáveis e irresolutos.

doídamente,
não mais se terão momentos de silêncio após minha morte:
tão somente os barulhos -
arfar sôfrego -
dar-se-ão por carregar-me, alvos,
rumo ao outro mundo -
desconhecida cápsula -
em momentos de cafonia.

... pois provar-se-ão todos fúteis e errôneos,
errantes e errados,
incapazes de achar a porta do lugar
que não só no futuro habitarão
mas o lugar que ainda agora habitam.

... o meu descanso será o desasossego de outrem.

*

ao menos agora
não é mais possível
arriscar-se a tentar
ornamentar minhas
alegrias sob o vão prisma
teu.

"Recordação II"

essa atmosfera de frigidez,
de incapacidade de sentir,
de incapacidade de dizer o que sentir é,
transcede instâncias, amolesce sumos,
aferrolha dias, escarna noites,
se aloja nesse desmanche,
abaixo da tensa luz,
luz essa plástica.

esse par de pés, de mãos
pousadas na inócua e oleosa cama
reduz-me às personas
as quais evito encarnar:
de histórias irresolutas, antigas,
ainda desconhecidas
e irreconhecíveis.

esses dedos brilhosos, rutilantes quase,
apontam para a cômoda espelhada,
com suas artérias pulsando em luz,
tristes, lastimosas, dolentes.

recompenso então todos os olhares,
aqueles entumescidos no humor
da fealdade, permeados
no anseio mais tênue,
que é estar perto do ter sido,
e longe do estar sendo.



junho de 2006

"Adeus II"

a avó morreu,
o avô morreu,
o horror morreu,
e juntamente deles,
o passado aquele brilhante,
esfuziado,
por aquela dor inefável e proibida.

a mãe morreu,
o pai morreu,
e se comunicam comigo por debaixo da terra,
sussurrando cantigas de amor, proteção e temor
aquelas esfuziantes,
por aquele milagre o qual chamamos vida.

a inocência morreu,
a coragem também,
e levaram com elas meu coração,
enterrando-o num lago terrível,
de pedras negras rodeado,
pois lá sabiam que não poderia tanger,
e portanto, esfuziando, me encanto distante.

assim adiado,
assim fugidio,
assim translúcido,
o dia passa sem adornos nem atrativos,
aqueles seus, que tanto tentávamos,
na tentativa de epifaniar,
cintilante,
aquela distante realidade crua.

a avó morreu, o avô morreu, a mãe morreu, a pai morreu, a inocência e a coragem morreram,
mas a dor também.

"Avó"

o tempo passou, escorreu,
mas a vontade de chorar
não obedece mais o passar lento das horas.

o choro agora
é uma realidade à parte de mim,
do mundo de outrora
e do mundo de tudo,
que me foge à regra,
e me sai sem pedir licença.

estavas bela,
estavas minha,
mas não estavas morta:
apareceu-me por saudades tua?
pois eu senti saudade em demasia.

não, não estás louca,
jamais foste esse produto das pessoas a invejar-te,
continuas lúcida até demais.

tudo passa ao numinoso,
ignomioso, mas tudo permanece o mesmo,
no final, o mundo se esquece de si mesmo.

me espera pelo dia em que eu passar, escorrer,
e minha vontade de viver
não obedecer mais o passar lento dos anos.

"Antropólogo"

não, não me tentes em busca daquilo que me cala,
pois já suficientemente me calo ao cair sem chorar.

é que a palavra já se esgota em possibilidade tua,
e à parte disso,
outras brotam duras pela pele ferida,
e te buscam uma meia-semântica.

não, não te descubro, me descubra tu e me aceita -
descubra-te a ti mesmo e me tenta,
pois sou um grito de um corpo cortado.

sua boca é de facas finas e navalhas,
a remanescência de alguma civilização perdida e muda.

...sou o fim despropósito, sem propósito
grito que se recusa a calar -
calar para o que me emudece.

"Recordação"

recordação
de nós a observar
ritos a se completar
e textos a serem lidos
e o duro martírio,
as louças, as roupas,
a infinitude do amar,
os carros o inglês
e a pompa da distãncia
que não existe
nem sequer num ressequido,
o aparelho dos dentes
e a flor imanente
e a flor a desabrochar,
e a flor da rua
a nascer tesa no asfalto
e a flor em mim
e a flor em ti a existir,
recordar o incerto
à beira do incólume.
recordar que outros virão
e outras também.

"Adeus"

colhi meu milagre
e o dei
em desmedida
para ti.

apanhei tuas matizes preferidas,
degradê ao inverso
ressonando pelos débeis papéis -
ao passo em que
o barulho do vento deslizava áspero
na madrugada
seca.

ao mesmo tempo em que
são cuspidos os verbos e as aliterações,
violinos tristemente musicados
despejam algo maior que nossos dias
pelas nossas vistas tão arranhadas.

trouxe minha palavra,
glosa veloz,
e a plantei em teu pântano.

soprei minha vida
no barro do teu milagre,
e com ele construí
o débil castelo no qual vivo -
que há de desmoronar
ao mesmo tempo em que
a terra rachará seca e pútrida
no sol
dilatado.

não cuspo mais palavras nem sonoridades,
somente aquele sangue doente, amargo
dos pulmões perfurados com o afã morto
de teu olhar.

adeus à lama
que empesteia teus pés,
que são teus pés,
e que, em breve,
ser-te-á
por
com
ple
to.

"Ciclos"

nós - remanescências

apedrejados com sinais,
(todos estes meros lembretes daquilo que éramos)
tentamos teimosamente
refocilar nas remanescências
do violento cadafalso -
pois...
assim nos completamos (plenitude tardia)
e assim retemos aquilo que nos é dado para,
antes de mais nada,
falhar e relatar o que foi evolado em razão
de nossos dolorosos temperamentos.



tu - cores vibrantes

tez melancólica,
beleza atenta,
que lê com adentrada atenção,
números infinitesimais, de ordem transcendental,
afim de decodificar o segredo meu, sangrado,
e também teu, onisciente
para que então pudéssemos nos tanger em nossos universos cúbicos, dolorosos-
(explosão).


eu - água que é viva

inquebrantável interrogação,
que pulsa fluidez e penetra abissalmente em ti -
até me perco em mim e em ti -
e dentro de ti me encontro todo gélido, morto em cerne de água,
que é profusão pseudosináptica,
eternamente parassimpática,
à tua imensa escuridão: (...)

"Epifania I"

estive sentindo a essência gloriosa de um instante
que há muito, por fugidio ser,
escorreu pelo ralo frio.

no mesmo ralo frio,
boiando na água turva, memórias
decifram-se a si mesmas no isolamento completo.

estive sentindo a essência dessas memórias
e desafiando penetrar por entre seu enredamento,
afundando-me nas entranhas daquele poço vivo
que acredita saber, estar se envereda
mas não sabe, que pensas no fundo, no lodo
bem fundo do fundo de tudo, tudo
assim como um poço fundo,
ensimesmado,
dentro de si mesmo.

"Sumiço"

tu não sabes,
mas existe algo maior que as horas,
maior que as medidas e as grandezas,
maior que o próprio Deus,
e maior que ti e a mim,
habitando a cor dos teus olhos -
é cor jamais antes contemplada,
inefável, indescritível,
que embora todos tenham noção de sua matiz,
ela torna-se somente passível de menção
em estado de emergência:
sítio, petardo que explode,
e engolfa a carne que desmancha...

e nesta tua inconsciência,
inconstância trêmula, insegura,
é que me recuo perante ao já conhecido,
me situo todo comensal,
e roubo aquilo que há de melhor em ti:
o sobejo teu:
tu mo excretas pela boca,
e despercebido a ti,
(e completamente necessário para o todo o resto)
tu mo dás e regozijas à beira
do proibido.

tu não imaginas,
mas penetrar, adentrar em ti,
(não do jeito que pensas...)
é o que almejo,
e o que paulatinamente faço
à contramão da tua percepção -
e, à contramão da tua língua,
me instalo em teu verbo,
falo em nome da tua alma,
mas não comando tuas ações -
incompleto-eu que sou.

sinto muito:
minha presença é nada além
de um lenço alvo,
irresoluto voando em direção a nenhum lugar:
tu me pegas do ar, do éter,
e me usas para limpar
absolutamente coisa nenhuma,
pois sou-te inútil,
e extraterreno sendo,
me encanto seco,
esperançoso d'um dia escapar por entre o teu bolso,
rumo ao chão de terra pisada,
esfuziando!

dolorosamente concluo
que tu não existes e jamais exististe - e já me convenci:
és etéreo como uma nuvem e,
apesar do niilismo inerente ao Eu verdadeiro,
tu me conduzes a uma fé que é toda ao contrário:
enfermo-eu tento explicar-me inutilmente;
coleto, translúcidas, justificativas,
e me contento com idéias jamais concretizadas,
de conhecer-me por meio de ti -
tu, que és um meio, um começo e o fim -
eu, que sou água viva e água-viva.


-


sei que já tive tu,
mas em qual encruzilhada,
tu se perdeste de mim?
quantos mais caminhos vermelhos
terei que trilhar à procura
da imagem conhecida tua?


-


hoje vi fotografia tua,
estás alegre, rolando na areia da praia;
e um questionamento me doeu:
é que me questiono até quando agüentarei
não estar presente em teus gozos,
não proporcioná-los, sequer conhecê-los...
temo este meu futuro, preso à tua silhueta,
e, lunar estando, acendo uma vela,
pedindo à quem estiver disposto a ajudar-me,
por resignação frente àquilo que jamais farei parte.

é a solidão do não-pertencer,
diz Clarice,
rasgando a folha de papel na qual minha vida sempre limitou-se.

é algum tipo de noite que jamais finda, essa tua silhueta.

e queria eu ser esta noite para fundir-me a ti,
mimético-religioso-eu, perder-me dentro de ti,
circunscrever-me em teus contornos,
sumir na fotografia, fadecer no encanto, enervante...


-


e então não mais seria tempo de continência, contenção, cativeiro:


segurar-te-ia a mão, colorindo teus vasos sangüíneos, me afundando em tua
cicatriz ser-te-ia uma luz estranha, lenta, a iluminar teu
caminho ser-te-ia o coração estrangeiro, sem-teto, a ser auxiliado pela tua
bondade de infinitos sentiria o arfar de teu suspiro, sonâmbulo e duro, e me
fundiria a ele em perispírito seria o teu nada, mas não o teu tudo - essa tua
imensidão desinente ao retrato branco-e-preto sentiria a tua
verdade doer em meus pulmões, maltratando minha face qual tempestade de gelo.

sentiria um amor jamais antes sentido
tocar-te-ia aquilo que jamais imaginaste antes ser tocado
viver-te-ia a vida, para não mais sentir-me tangencial às tuas delícias
seria tuas delícias
seria a lama dos teus pés
seria noite
seria vento
seria lua
ser-te-ia, por completo.

e... que mais me restaria?
tenho medo da liberdade...
mas... vês-me? estou aí dentro -
cardiotoráxico que sou.

"Janelinha"

Goddess Bunny acorda de seu sonho rosáceo de crianças a brincar e flores, levanta-se de sua cama bonita e quente para o dia de encanto e pisca. Pestanejando, vê que há chocolate com leite em seu aparador, mantido quente por Deus somente para ser bebido pelos lábios de uma menina como ela. Bem do ladinho, flores rosas, mas menos rosas que as do sonho. Pensa que é especial, e de fato sendo, sorri para o espelho, onde uma menina devolve o sorriso com dentes à mostra. São dentes todos, menos os da frente: há somente uma janelinha que se forma entre o branco do esmalte e o preto da boca por dentro. Mas e a boca por fora? Pensa Goddess Bunny. Concluiria: é a janelinha. Ainda encostada em seu travesseiro macio, observa o que há lá fora de si própria. É um quarto todo a lhe observar: o guarda roupa, as flores rosas, o mata-borrão, o copo de água, os brinquedos, os livros, o tapete, os remédios, o aparador, os papeis desenhados, sua vitrola. Talvez até as paredes, o chão e o teto cochichem a seu respeito, quando ela se espreguiça molemente na luz do dia. Há pássaros cantando na janela. E até seria fácil tocá-los, acariciá-los como os de pelúcia guardados no alto do guarda roupa, se não fosse pelo andar difícil que ela sempre faz quando se levanta dos lençóis. Mas como queria tocá-los! E com o andar endireitado? Não, porque endireitar o andar machucava muito suas pernas, como aquela vez antes de cair doente na cama: tinha ralado o joelho ao cair de uma árvore alta, bonita como o verão lá fora. Quantas penas tinham os pássaros?
Pé ante pé, caminha duramente até o aparador, onde segura o chocolate quente e o vira todo em sua boca. Estava quente, mas não se importava com o fogo da bebida, pois tinha um fogo ainda maior anulando aqueloutro: era fogo dos seus pulmões, a respirar em batidas como às do coração, entrecortando os goles de chocolate. E o pio na janela? Forte e repentino que até assusta! É quando o chocolate quente cai pro chão e a louça se espatifa e novecentos e vinte e sete pedaços, todos iguais aos olhos de todos. A cor do chocolate se desmancha no ocre do chão a receber sol, e de repente parece jamais ter sido tocado pelo marrom do doce, desmanchado na claridade. Goddess Bunny agora fica nervosa, pois seu leite caiu todo! Como cansava esses minutos iniciais do dia, como eram difíceis de darem trégua para uma menina especial como ela. E a menina do espelho, que ria com tanto gosto? Por acaso nunca lhe aconteceu nada do tipo? E sua mãe, não lhe deu educação?
O melhor mesmo seria sentar-se e esperar a tremedeira passar. Senta-se e acaricia a colcha, reparando em como seus dedos mudaram. Notou-se porque a sombra feita dos dedos em encontro com o sol não era mais de um coelho. Talvez de um pássaro prestes a voar. Como até mesmo sentar era uma atividade penosa! Havia o relógio dorminhoco na parede, preguiçoso como ele não há: nele batiam os segundos num ritmo lento, até mais lento que o respirar da menina. Há um som lá fora, tão divertido que dá vontade de dançar! É o bom realejo, a chamar as pessoas para ler a sorte do dia. Gostá-la-ia de saber a sorte para o próximo segundo do relógio de bater sonâmbulo, porque vivia numa realidade adiantada daquela do tempo. Não agüentava o segundo que passava, pois lá estava ela antecipada ao relógio, a pensar nos balões coloridos e flores de seus sonhos. A pensar em como brincava e pulava e ria. A pensar no gosto do algodão doce a derreter na boca e como a luz do parque cortava as nuvens de açúcar de maneira engraçada.
E para ir ao banheiro nas horas de necessidade? A facilidade desta menina é que também era especial na hora de urinar. Para isso, o fazia de pé no quarto, ali mesmo, na comadre comodamente descansada embaixo da cama. Não havia necessidade de ir ao banheiro, bastava urinar no bico da comadre, que é muito parecido com o usado por sua mãe para fazer o café, na época em que ainda podia ir até a cozinha sem maiores problemas. Mas tudo havia ficado muito complicado desde o verão passado. Há mais ou menos um ano atrás. Goddess Bunny havia caído enferma na cama. E essa cama não é tão quente e aconchegante como a de agora: era de um metal frio, de arrepiar a qualquer um. Preferiu não guardar muitas lembranças sobre essa época, mas havia uma particularmente triste. Certa vez, precisou tirar uma espécie de água da coluna. Se o doutor a visse, poderia dizer finalmente para sua mãe e para seu pai e para sua avó e para seu avô e para sua tia e para seu tio o porquê de tantas dores, de tantas torções. Doeu como nunca imaginou doer. Doeu tanto que a simples lembrança a fazia molhar a cama, de noite, na hora dos pesadelos a lembrando de seu medo de agulhas. Não é à toa que as agulhas são tão horríveis, pensa Goddess Bunny, até o jeito que a palavra “agulha” soa é feio. Quereria ela tanto não mais se lembrar dos brancos do hospital. Decidiu viver pelas cores do dia, das árvores, dos seus sonhos. E pelas cores vive: que seria de tudo sem o giz-de-cera a pintar sem descanso o dia que lá fora de tudo acontece?
Ainda sentada na cama, Goddess Bunny pensava nas cores do dia: roxo ou lilás? O dia se aproximava do cinzento, mas o cinzento era uma cor proibida – preferia qualquer coisa ao cinzento! Talvez até a morte: que seria morrer? Sua mente pensava na morte como quem pensa no almoço. A morte vinha e... Ia embora. Era algo que não precisava entender muito bem, se vivia e se passava, e agente se conformava. Agora o realejo vai embora, ouve-se sua música diminuindo o volume, indo embora. E a morte, continuava. Teimosa! Goddess Bunny se arrepiava. Sua primeira e única experiência com morte foi quando viu um pardal caído em seu quintal. O pardal dava pios fracos, e estava coberto por aqueles seres horríveis! As formigas. Horríveis, sim. O comiam todo, e sequer havia morrido. A pressa era tanta que nem a morte poderia acontecer sem que antes a apressassem. Mas até pra morrer se tinha pressa? Goddess Bunny tinha pressa de muita coisa, mas de morrer, não. Não tinha pressa daquilo que não entendia, sequer e muito menos daquilo que não tinha pressa de entender. E o relógio? Tinha pressa de alguma coisa? A água tinha pressa de ser bebida. O giz-de-cera, de ser usado nalgum desenho belo. As roupas, de serem usadas, rasgadas até. Das coisas que Goddess Bunny mais tinha pressa, era de brincar lá fora em época de sol. Mas a pressa arruinava a tudo. Goddess Bunny mesmo admitia que sua pressa a prejudicava, porque se lembrava de seu período de escola.
A escola foi uma fase tão boa que talvez seja mesmo por isso que durou tão pouco. Era triste, mas era verdade. Foi talvez o melhor momento de sua vida, estar entre quem gostava e ser gostada. Lá as pessoas tinham o seu tamanho, a sua idade. Até o brilho dos olhos era o mesmo. Passava o tempo aprendendo a magia das letras, e o feitiço de juntá-las em uma palavra. E a epifania de juntá-las numa frase. Pulava como quem havia descoberto a corda de pular corda ontem. E as maçãs do recreio eram mais vermelhas. A água, mais gelada. Não sabia como, e não sabia o porquê, mas a vida no colégio parecia mais frenética, mais leve, como o vento que bate no rosto de quem anda de carro com a cara pra fora, desrespeitando os avisos de mamãe e papai quanto a andar assim. Mas que dor quando a corda batia no rosto! A falta de sincronia com o dançar da corda era como o desritmo do choro de quem a levava no rosto, sem dó. Mas tudo logo passava rapidamente, olhava-se pro céu e dizia: Olha a madrinha lá no céu! E tudo voltava a ser belo e rápido. O sinal era o indicativo que tudo acabava: que tristeza! Mas a volta para casa indicava também um jantar bastante delicioso, que a fazia salivar de fome. Seus colegas estavam destinados a esse mesmo futuro apetitoso de massas e carnes e batata frita. E sobremesa após a comida.
Quem dera Goddess Bunny pudesse voltar a comer o que queria, na hora que quisesse. Descobria na vida uma fonte de descobertas melancólicas: tudo estava um segundo aquém dela mesma. Como era estranho, viver adiantada. Viver na frente do relógio, do chocolate, do guarda roupa. Esperar pelo que? Não entendia bem, esperava por algo a acontecer. Algo a se encantar... Mas vinha o sono, ladrão maligno, e lho roubava o acontecimento muito antes dele próprio acontecer em plenitude, deixando-a em desamparo com doída freqüência. Quem me dera saber ler! Leria todos os livros da sala. Inclusive os que não têm desenhos, pois não sou preconceituosa como as pessoas que aparecem sendo presas no jornal da noite. Nem mais se lembrava do jornal da noite, essa menina-Goddess Bunny. Talvez assim fosse melhor, pra que precisava do jornal? Para ler acontecimentos quando o dela, o mais importante de todos, demorava pra vir? Talvez ele venha depois de mil trezentos e noventa e uma voltas daquele ponteiro maior. Ou mil cento e dezenove? Não sabia. Sequer tinha noção da relativa imensidão presente no número mil. Mas quem tem?
Já fazia tempo, o dia passava, tinha sono... Fui vencida. Um sono tão forte que veio e não pediu nem permissão pra entrar em Goddess Bunny. Custava bater na porta? O sono era uma coisa boa: anunciava que um momento bom se aproximava, digno do colorido mais belo, da risada mais gostosa. É que o sono antecedia o sonho, essa realidade de tempos dourados que duravam o quanto quiséssemos enquanto pudéssemos não ter as rédeas de nós mesmos. E não seria bom se não pudéssemos nos controlar sempre? Fazer tudo o que gostássemos? Fazia planos para seu sonho: esta noite sonharia que conversaria com seus amigos de escola, que correria com eles até as colinas mais altas, para que a visão do dia que acaba fosse especial. Fosse memorável e pegasse emprestado o dourado do crepúsculo para seu sonho. Para sua vida e também para suas pernas: era de dourado que precisavam. Neste mesmo sonho, rolariam do topo da colina para mais abaixo, onde se acumulavam o resto das crianças, aos montes, todas risonhas e pueris. E ainda mais! Cairiam todas elas de cansaço sobre suas próprias pernas, e ninguém sentiria mais dor que a própria do impacto de despencar sobre seu próprio peso. O céu da manhã seria como o de uma tela feita de doces que também é tinta a colorir o dia de todos. Pacientemente, esperaria por mais céus de outras manhãs, doces como só aqueles que Goddess Bunny poderia imaginar. Esperaria... Havia a pressa, mas esperar é preciso. É preciso mais que esperar pelo momento de seu sonho acontecer. Dentre todos, aquele sonho qual uma estrela que cai do céu toda noite que sua perna despontava em dor era o mais persistente. Ele persistia incomodamente e Goddess Bunny não entendia. Mas aceitava, o sonho era uma realidade que ainda estava por vir: se escondia entre os ponteiros do relógio que dormitava sem pressa de nada. O sono... Já estava por vir. E como seria difícil dormir com a claridade do dia lá fora... Goddess Bunny se levanta, e tortuosamente anda seu caminho de dores até a janela. Desta posição, percebe o dia lá fora. O dia acontecia sem que ninguém soubesse, despercebido a todos... E como era bonito. Era como um sonho, estar lá fora! Lentamente, se desequilibra... E escorrega de sua janelinha. Goddess Bunny agora dorme dentro de seu sonho e é feliz, como se nunca houvera sido em toda sua vida de duzentos e sessenta e sete anos.

"Vento nas cordas"

Com a iniqüidade que só lhe era característica através daquela enorme tempestade que em seu peito estourava forte e altiva, vivia-se em inércia absoluta e pura, num infernal ritmo de addagio interminável. A hostilidade, elemento sempre presente nas assustadoras intempéries que o assolavam, aqui se mostrava sob a forma de uma dor aguda e pungente, trovoadas num céu cinzento. Era preciso mexer-se, para transformar aquela dor em algo ainda mais obstinado, transformá-la na própria transformação: em um sentimento belo. E, com a beleza do primeiro movimento de um universo de inércia – um gracioso gesto com o pulso, feito com cuidado e atenção – vir-se-ia a definir todo um corpo posterior de ações e conseqüências; e a vida construía-se em torno daquele início, daquele movimento reprimido e irresoluto, que poucos identificariam como um manejo de repressão. Depois, tomou-se o braço com a mão e, virando para o lado direito, abrangeu num elegante movimento o nada que o envolvia. O nada ocre que, em ondas, propiciava ao modelo uma sensação de desconforto. Neste nada, havia o corpo do modelo, que estudava o movimento por meio dele próprio – sobre o qual era depositada a fé de alcançar alguma graça excepcional, para agradar a câmera que tirava fotos do corpo, registrando passo a passo daquela geografia distinta que mudava a cada segundo, seja por passos sofisticados ou por bruscas mudanças de postura. A câmera talvez fosse o único objeto completamente imóvel do recinto azul-escuro, por onde os flashes saiam, essas partículas-ondas de luz que inundavam a decoração da sala, amalgamando aquele azul em uma turbulência cromática de luz e paralisando as poses do modelo para eternidade – que sequer eterna era: até a fotografia ser esquecida, portanto, seguia-se em frente por omissão de outras opções, mesmo quando não havia propósito nisso.
Agora um braço era erguido enquanto o outro, apontava para cima, mais abaixo da cintura, equilibrando aquelas pernas – frágeis sustentáculos – que do corpo, apresentavam o conjunto menos harmonioso para ser retratado na película honesta. Dentro de si, a revoada não manifestava sinal de decrescer. O vento era atormentador e incessante, arrastando toda sua cerne para que então, o tufão realizasse o castigo tão merecido. Toda sua carne, órgãos, fluidos, girando em descompasso do passo de dança que agora fazia. Algo semelhante à polca agora era realizado, sentia necessidade de dançar, manifestar a si próprio num movimento de alegria, alegria essa que ele desejava ser matriarca de uma série de outras futuras. Deveria mostrar-se alegre, pois a ventania dentro de si provava-se mais forte, e embora dominante, se era necessário demonstrar para a câmera que estava perfeitamente confortável. Honesta, haveria de somente registrar o virtuoso passo, o pé erguido gracejador, o corpo divertidamente inclinado e o sorriso de quem se encontra em profunda graça quando na verdade, se encontra à beira. À beira da colina, à beira do que vier no instante a seguir. Visto de dentro, não passaria de um amontoado de matéria viva rodando ad infinitum no vento-açoite, o vento que batia no seu eu mais profundo, nas fibras de sua carne, nas cordas que compunham sua matriz. Quem por ali se enveredasse, haveria de sofrer também junto de si. O vento é o sinal do porvir: eletricidade selvagem que supera o conforto doloroso e a segurança de posar sabendo que a pose de agora define à seguir.
A repetição dos mesmos movimentos também se mostrava necessária, uma vez que quase todos já haviam sido explorados pela sua sagaz inteligência física, que algures os planejara de antemão. Novamente, juntava as mãos, serpenteando os braços à volta do nada à sua esquerda, que de ocre metamorfoseava num furta-cor, pose que imaginava ter dado certo para a câmera. Às vezes as mãos, jogadas ao acaso do próximo movimento da cadeia previamente decidida, faziam os mesmos meneios ao mesmo tempo, porém de maneira tão discreta e analogamente casual, que aquilo jamais constituía uma repetição de movimentos, mas algo tão leve como o contraste do rosa do mamilo com a tez branca, na ausência da sofreguidão que por pouco tempo avermelhava sua pele. Sabia que, depois, o ensaio fotográfico chegaria a um fim e, pouco mais tarde, também a graça encontraria seu fim e seria, displicentemente, deixado de lado até por si mesmo. De feitio completamente diferente ao padrão usual, a história de seus movimentos processava-se apressadamente, de segundo em segundo, até o fim, numa expectativa constante de nervosismo. A temperança inerente ao modelo – em contraposição a inerente frustração do perfeccionista – nada mais era do que uma justificativa para seguir em frente com as poses, numa progressão pretensiosa de atitudes na câmera, cada vez mais abusadas. Suas mãos acariciavam os mamilos e a expressão era de prazer. O ensaio nada mais seria que não uma obra retratando uma vida luxuriosa. E novamente, vem a ventania juntamente de seu ódio tolhido. A paisagem de seu eu mais interno estava assolada, os pássaros agora eram violentamente jogados contra as pedras. A graça perdia espaço para os trovões. Acreditou ter chegado a seu ponto crítico.
Estariam os movimentos de seu corpo tornando-se incivilizados pela liberdade repentina que começava a preenchê-lo ou somente agora a percepção destes tornavam-se notadas, de forma que sempre o transpareciam nos atos, até mesmo os de maior discrição? – a expressividade do movimento de agora, sincronizado à pergunta, foi notável, dará certamente uma excelente fotografia – pois então, a resposta da pergunta, ao contrário de todas as outras respostas, não estava visível ou disfarçada sob roupagem nenhuma, pois ela própria é a pergunta. Sequer disfarçada de pergunta estava, já que o tom dialético e metalingüístico dela se entrega em forma de retórica. Plié – o aperto se expandia para suas partes saudáveis, ele anunciava uma possível mudança interna, o interno começava a expandir-se para fora, manter a persona ativa estava sendo custoso demais. Era um sentimento novo, algo semelhante à vertigem de expor-se. Era a vontade de expor-se que regiam seus passos e sua dança: demi-plié. Será que sua vida de esperanças infindáveis de ser também transparecia em sua face maquiada de rouge? O sonho mantinha-se escondido debaixo de sua pele, servindo de intermediário céu para a tempestade que dentro dele a tudo destruía. Por baixo do mesoderma, o sonho mantinha-se vivo; as esperanças ficavam acima dele; e mais acima, a maquiagem. O sonho sem quaisquer esperanças de ser é um aspecto intrínseco de seu organismo, a todo tempo consciente e vigilante. Gran jeté.
Ao mesmo tempo em que a intersecção entre o que se é para si e o que se é para o outro é uma abertura, ela também é esse sonho, sonho de um dia ser pleno. A plenitude encontrava-se cada vez mais perto, visto que pela quantidade de flashes já disparados indicava o fim do ensaio, o fim de sua dança e de seu estado reflexivo de profunda graça. Glissade de sous. O fim de sua vida encontrava-se perto também, já que nesta dança ela havia sido discorrida no seu monólogo mais importante: aquele realizado não só pela sua mente, mas pela comunhão total de seus tecidos e órgãos, pedaços multifacetados muitas vezes esquecidos dentro de si e que agora acordavam na forma de um furacão. Talvez a última instância da qual deveria manter-se presente é aquela onde se mostra o que se é para si para a câmera. Neste caso, ele decide posar de forma nunca antes conhecida por ele: direcionou os braços pra si, abraçando-se como se fossem partes aleatórias de um todo fragmentado. A fotografia haveria de, na sua sinceridade, mostrar aquilo que nunca mostrou, mas que agora gostaria de mostrar: aquilo que se é por dentro. Degagé. Seria visto por dentro, cortado e até mutilado, talvez aniquilado. A diferença seria gritante. Aquele homem que a cada tom de voz denotava-se uma mentira, que a cada gesto notava-se uma falsidade bestificada e que aquele sorriso que deixava quase de forma pornográfica aparecer uma tristeza haveria de nascer renovado.
O suicídio interno que se planejava dentro daquele corpo dançante – pas marchê – não era nada mais que uma fealdade. Fealdade essa que começava em seu lugar mais correto: da idéia de matar-se a si mesmo, mesmo que indiretamente, renunciar ao prazer do gozo e da fruição a troco de parar de existir como alguém que não se é durante algum tempo – pois o suicídio é bom demais para ser eterno. Poder-se-ia ficar imóvel, e calado – calar esse corpo que conta mentiras com verdades a cada flash. Evitaria, portanto, de mentir para a câmera, que honesta sendo, registrava indistintamente aquela poesia de mau gosto. Seu corpo pára. O ensaio, poucos segundos depois – oito exatamente – também pára, tendo registrado oito fotos estáticas de um corpo débil e doente que quer morrer. Elancé, pivot, demi-brás? Chega de interpretar papéis que sequer denominado por outros havia sido, e de fabricar falsas caras e gestos. A realidade haveria de cooperar para que o esconderijo não inundasse naquele mar de dores que dentro de si carregava. Por que a dor não passa, agora que não mais dança? É a vida que agora inunda o estúdio, ela penetra por entre aquele enveredamento que antes era preenchido por ventania. Os pássaros agora cantam para a chuva e para o céu.

"Luz da vela"

para Karlheinz Stockhausen.

há, obstinadamente, quem veja sob o murmúrio do psicotrópico
a integração de uma luz à noite, torpe e manchada:
faz-se quase silênciosa, a noite que cúbica ressoa,
e um salto nela e finda-se a vida, finda-se o sonho.

faz-se muda, sem nenhum resquício de idílio e amor,
sem constatação alguma de ausência primordial,
que há muito faz-se-ia pulsátil pulsátil:
somente há a contemplação de uma chama difícil,
que queima sob o mundo, que queima sob o etude,
enormemente inerte.

e a soma dos males da vida se nulifica:
é que a chama tem tal poder que,
na escuridão contumaz interrompida pela vela,
é vida que, líquida, escorre pelas paredes como cera,
amalgama a realidade do som e a do tempo.

escritos, provações, coitos e dores:
o espelho faz-se gente,
severamente se interroga,
e pronto desatina.

e no final dos tempos
já fica difícil delimitar o que é noite,
o que é vela,
o que é etude II.

"Introdução"

... é que por não saber te enfrentar,
consisto na fealdade do amadorismo.
e é também por não saber escrever,
sequer conhecer,
o que está além de tudo isso.

... é por gostar demais do que há de menos,
que te sugo por inteiro, vampiresco,
e te lambo os beiços.

... mas no entanto eu te insisto,
e desminto aquilo jamais dito
na doce profundeza da beleza
de não saber o que se diz,
ou o que se vai dizer.

... eu não sei dizer o que vou dizer,
tu também não o sabes, perceba bem,
sequer precisas:

o silêncio te absorve como irmão e te cobre de mim à sua visão mais bela de ti.

... sequer isto eu sei, como saberia
aquilo que se esconde na beirada do mundo?

há um mundo a te olhar, um mundo que não é meu mas é de todos.

queria eu amadorismo de flores a te crescer.

"Exploração"

te exploro por completo,
por dentro
e
por fora.

enquanto por dentro,
investigo a familiaridade,
a veracidade da verdade,
no ensaio da nossas estórias.

em convite à identificação com estas estórias,
me livro de mim mesmo ao investigar a familiaridade,
a veracidade da verdade,
no ensaio das mesmas estórias...

... e penetro fundo em ti.

colho os nutrientes de mim mesmo,
no ensaio de cada estória,
que é também o teu reverso
pois tu és meu reverso.

e para mim mesmo,
me permito à fluidez de ti

ao fazer estória,
ao fazer identidade,
ao fazer regra,

e um grande terreno...

enquanto por fora,
noto o fenômeno de cada estória,
o que em cada sentido aparece
em cada terreno...

... e penso somente naquilo que penso.

vejo
atentamente
que tudo é aquilo que brinca de ser...

e noto um vazio temporário aparecer como forma,
substancial e real não reconhecidamente...
atento.

“Baby Dee no campo de flores”

(...) O que ocorria a Baby, na realidade, lhe acontecia numa instância paralela àquela vivenciada pelo genérico. Escapava-lhe algo de tão profundo, de tão particular, de tão irremediável, que tudo que podia fazer quanto a isso era esboçar uma posição fetal em seu momento de sono; e talvez, um embotamento ao quais os ombros caídos eram sensíveis. Essa dor, também, não poderia jamais ser impedida de se manifestar, senão pela emergência do doloroso, que se reverteria em novos meios de vazar e aturdir essa crosta que era sua epiderme. É que caso a dor fosse cortada, sofrer-se-ia o tempo todo. E a substituição dessa dor por outra, embora alternativa plausível, não parecia possível. Substituir pelo quê, afinal, se sua vida desde então havia sido a construção de um forte, de um arquipélago, em volta de um centro seguro, que lhe dava o amor que jamais houvera, e que se lhe criava algo jamais concebido? Em momentos de luz, só a dor lhe sobrava. Alheia ao contato de matéria menos densa que a dor, Baby abaixava sua cabeça, se protegendo do sol com seu chapéu de grandes abas.
Casualmente, o vento lhe sopra pra perto algumas flores. E de forma igualmente casual, seu homem aparece. Ele, que somente se interessara por Baby em razão de suas curvas, vivia agora com ela um estreitamento que, espacialmente, fazia do seu corpo algo ainda mais paradoxalmente inalcançável. Este estreitamente, sob uma perspectiva mais abrangente, podia ser chamado de vida. E Baby, na ânsia de ser desejada, se prendia a este homem. Já era tarde pra qualquer coisa, gostava do desejo e o procurava como quem aspira o ar, sofregamente. A diferença deste homem para os outros era justamente o desejo de Baby – desejo esse preguiçoso e paciente. Paciente perante uma necessária emancipação, plena e certa de si mesma dentro de um espectro de outras necessidades menos urgentes. Baby ansiava pelo momento em que abrisse as asas e abandonasse a segurança de encontrar naquilo que havia chamado de lar a doçura de um rosto especial, perfeito e profundo como poucos.
Havia também o pavor de identificar-se com o homem. E mais: o pavor de intimidar-se pelo o homem, de forma a adentrar numa relação jamais vivenciada. E supondo-se que esta dor, como se em um universo completamente desumano se habitasse toda existência desprovida de suas essências efêmeras, jamais tivesse existido, o pavor ainda existiria. Pois este é um medo transcendental, que vai além das possibilidades as quais nos acostumamos rotineiramente. O medo de levantar-se sozinha, frente à debilidade de uma perna torta e doente. O medo de viver sozinha, frente à morte de familiares. São todos medos transitivos, e transitáveis, no sentido de que percorrem nossa vida e nossa alma em constante desassossego. Mas o medo da identificação é o patrono de todo o resto, pois é provavelmente o único inato a todo ser. Identificar-se será o primeiro passo para a outra identificação: a de um coletivo que tanto existe apesar de nós quanto contra nós. É deste que deriva o medo de, finalmente, se achar. Pois se achar é atestar o fim de uma vida toda, sendo ela boa ou não. O fim está no outros.
Baby imaginava a existência como cercada por um labirinto que, possivelmente, não era só metafórico. O labirinto, mesmo que de forma infinitesimal, mudaria seus caminhos a todo átimo de segundo, acumulando assim, infinitas e impossíveis possibilidades de se alcançar seu centro. Não se sabe exatamente das estatísticas, mas depara-se com sua saída em um número gritante e ofensivamente mais alto que o centro. Talvez seu centro contemplasse não um tesouro, mas um poço, de profundidade inconcebível. Uma vez em queda, a existência poderia dar adeus a qualquer chance de voltar ao labirinto, para o agrado ou desagrado de quem lá caísse. Achar-se, analogamente, seria achar seu poço, e contemplar seu infinito de igual para igual.
Baby agora coloca seus óculos escuros, e cobre sua perna com um vestido de estampa florida, leve como seda. O homem senta-se ao seu lado, e os dois permanecem mudos, misteriosos. A seguir, Baby aplica um perfume de nota floral no pulso e no pescoço. Pensava: e o receio de se auto-sabotar num relacionamento com o homem? Nunca poderia saber se ir longe demais é ultrapassar em muito a velocidade da vida alheia. E se se guardasse, de forma a aceitar uma rédea imposta por Deus? Refletir a respeito do por que para quem para quê se aceitava a posição de besta domada era uma tarefa muito difícil. Desconhecer os próprios limites, por inexperiência dos fatos, a levava a questionar sua capacidade: era pouca ou muita? Morrer incólume, talvez, fosse uma resposta. O Eterno queria Baby toda, intocada. E ela mesma queria a redenção, a salvação das chamas de si mesma. Assim, a dor seria por ora estancada, de jeito a fazê-la forçosamente procurar outro estandarte para a vida que não seu constante vazamento.
O homem lhe poderia oferecer a redenção? Baby procurou a resposta nas pétalas de um girassol, e mediunicamente viu nelas que isso seria pedir demais para quem tem respostas de menos para dar. Jamais viu-se um homem salvar o outro sem antes procurar para si sua própria salvação. A busca fútil pela redenção só poderia levar a novas frustrações e à confirmação de que penumbras juntas formam somente mais sombras. Cada ser carrega seus prazeres como tesouros únicos, e suas dores também. A translucidez alheia só faria acrescer à sua ainda menos cor e menos intensidade. Mas a resposta também não estaria em procurar em isolamentos, nas orelhas do dia intacto, impassível de interação.
Só lhe sobraria o desejo de posse. De possuir o homem como antes havia feito, irresponsavelmente. De posse sem ligação. A falha deste ato é evidente, e ululante em sua natureza. Havia uma herança em seu sangue que fluía com força: o gelo. Relacionar o homem ao gelo, à terra fria e perfumada de seus componentes ácidos, era sinônimo de desejar ater-se a algo maior que si mesma, ao invés daquilo que tinha somente o seu tamanho. Baby encontrava então a extensão de seu corpo no alheio, até o descrevia, pré-reflexivamente, como ela própria. E como uma parte pequena de algo, Baby se via do tamanho que realmente era.
Ao mesmo tempo, sua alma era incomensurável em sua diversidade. Ora era a flor, ora quem a segurava. Amedrontava-se ao se olhar no espelho. Malignamente, o que via em sua reflexão era a imagem de outra Baby a espreitá-la, escondida atrás da cadeira, atrás da porta, atrás de si mesma, atrás da orelha da página do livro, rindo diabolicamente de sua miséria. Na duplicidade do mundo, o espelho revelava mais do que se esperava. Ea a porta para a identificação do mundo. Baby, por mais de uma vez, tentou enxergar suas próprias raízes lá. A certeza obscura de que seus arquétipos eram firmes descendiam da necessidade de acreditar em algo que não a dor de viver, e desejar num tempo sem fim e sem saciar-se.
Ela seria, por ora, uma mancha trêmula, assimétrica de pulsões, amarguras, agressividades. Nãoseria exagero dizer um difuso limiar entre guerra e paz. Ainda via o girassol, e desejou sê-lo, somente para abandonar a crisálida humana, experimentar uma alma vegetal. Gostou muito de mimetizar uma ignorância que não lhe era própria, uma vez que a incompreensão é mais vasta e acalentadora que a atividade de conceber constantemente as relações pelas quais o sentir se constrói. O não-entender era Deus, a flor em sua delicadesa e era também o homem. Lera que o melhor mesmo era entender e a seguir, abdicar do entendimento. Antitética mas dialeticamente, era como ser doente sem possuir doença. Ser positivo, e ser negativamente positivo.
Baby gozaria de sua imensidão quando se desse conta que sabia o que pensou não saber. O engano de saber mais que ela própria torná-la-ia. Tornar-se-ia ela própria quando o mistério da flor se desse por si e por mais nada. E o mistério do homem se fechasse dentro de si próprio, como um embrulho. No fundo, jamais quisera compreender. Sabia da impossibilidade dessa escolha, e que emancipar-se de si própria a levaria a uma desconstrução complicada de um quebra-cabeça de peças incógnitas. Por vezes, entretanto, adivinhava os saberes do mundo com uma rústica divinação de pétalas jogadas ao vento. Ou analisava o que a posição da tinta no papel parecia querer dizer a ela, mudamente. Adivinhava como agora, quando o homem, mudo assim como veio ao lado de Baby, se levantava para ir embora e voltar sabe-se lá quando. E a Baby, só restava sua própria humanidade. (...)