sexta-feira, 22 de agosto de 2008

“Baby Dee no campo de flores”

(...) O que ocorria a Baby, na realidade, lhe acontecia numa instância paralela àquela vivenciada pelo genérico. Escapava-lhe algo de tão profundo, de tão particular, de tão irremediável, que tudo que podia fazer quanto a isso era esboçar uma posição fetal em seu momento de sono; e talvez, um embotamento ao quais os ombros caídos eram sensíveis. Essa dor, também, não poderia jamais ser impedida de se manifestar, senão pela emergência do doloroso, que se reverteria em novos meios de vazar e aturdir essa crosta que era sua epiderme. É que caso a dor fosse cortada, sofrer-se-ia o tempo todo. E a substituição dessa dor por outra, embora alternativa plausível, não parecia possível. Substituir pelo quê, afinal, se sua vida desde então havia sido a construção de um forte, de um arquipélago, em volta de um centro seguro, que lhe dava o amor que jamais houvera, e que se lhe criava algo jamais concebido? Em momentos de luz, só a dor lhe sobrava. Alheia ao contato de matéria menos densa que a dor, Baby abaixava sua cabeça, se protegendo do sol com seu chapéu de grandes abas.
Casualmente, o vento lhe sopra pra perto algumas flores. E de forma igualmente casual, seu homem aparece. Ele, que somente se interessara por Baby em razão de suas curvas, vivia agora com ela um estreitamento que, espacialmente, fazia do seu corpo algo ainda mais paradoxalmente inalcançável. Este estreitamente, sob uma perspectiva mais abrangente, podia ser chamado de vida. E Baby, na ânsia de ser desejada, se prendia a este homem. Já era tarde pra qualquer coisa, gostava do desejo e o procurava como quem aspira o ar, sofregamente. A diferença deste homem para os outros era justamente o desejo de Baby – desejo esse preguiçoso e paciente. Paciente perante uma necessária emancipação, plena e certa de si mesma dentro de um espectro de outras necessidades menos urgentes. Baby ansiava pelo momento em que abrisse as asas e abandonasse a segurança de encontrar naquilo que havia chamado de lar a doçura de um rosto especial, perfeito e profundo como poucos.
Havia também o pavor de identificar-se com o homem. E mais: o pavor de intimidar-se pelo o homem, de forma a adentrar numa relação jamais vivenciada. E supondo-se que esta dor, como se em um universo completamente desumano se habitasse toda existência desprovida de suas essências efêmeras, jamais tivesse existido, o pavor ainda existiria. Pois este é um medo transcendental, que vai além das possibilidades as quais nos acostumamos rotineiramente. O medo de levantar-se sozinha, frente à debilidade de uma perna torta e doente. O medo de viver sozinha, frente à morte de familiares. São todos medos transitivos, e transitáveis, no sentido de que percorrem nossa vida e nossa alma em constante desassossego. Mas o medo da identificação é o patrono de todo o resto, pois é provavelmente o único inato a todo ser. Identificar-se será o primeiro passo para a outra identificação: a de um coletivo que tanto existe apesar de nós quanto contra nós. É deste que deriva o medo de, finalmente, se achar. Pois se achar é atestar o fim de uma vida toda, sendo ela boa ou não. O fim está no outros.
Baby imaginava a existência como cercada por um labirinto que, possivelmente, não era só metafórico. O labirinto, mesmo que de forma infinitesimal, mudaria seus caminhos a todo átimo de segundo, acumulando assim, infinitas e impossíveis possibilidades de se alcançar seu centro. Não se sabe exatamente das estatísticas, mas depara-se com sua saída em um número gritante e ofensivamente mais alto que o centro. Talvez seu centro contemplasse não um tesouro, mas um poço, de profundidade inconcebível. Uma vez em queda, a existência poderia dar adeus a qualquer chance de voltar ao labirinto, para o agrado ou desagrado de quem lá caísse. Achar-se, analogamente, seria achar seu poço, e contemplar seu infinito de igual para igual.
Baby agora coloca seus óculos escuros, e cobre sua perna com um vestido de estampa florida, leve como seda. O homem senta-se ao seu lado, e os dois permanecem mudos, misteriosos. A seguir, Baby aplica um perfume de nota floral no pulso e no pescoço. Pensava: e o receio de se auto-sabotar num relacionamento com o homem? Nunca poderia saber se ir longe demais é ultrapassar em muito a velocidade da vida alheia. E se se guardasse, de forma a aceitar uma rédea imposta por Deus? Refletir a respeito do por que para quem para quê se aceitava a posição de besta domada era uma tarefa muito difícil. Desconhecer os próprios limites, por inexperiência dos fatos, a levava a questionar sua capacidade: era pouca ou muita? Morrer incólume, talvez, fosse uma resposta. O Eterno queria Baby toda, intocada. E ela mesma queria a redenção, a salvação das chamas de si mesma. Assim, a dor seria por ora estancada, de jeito a fazê-la forçosamente procurar outro estandarte para a vida que não seu constante vazamento.
O homem lhe poderia oferecer a redenção? Baby procurou a resposta nas pétalas de um girassol, e mediunicamente viu nelas que isso seria pedir demais para quem tem respostas de menos para dar. Jamais viu-se um homem salvar o outro sem antes procurar para si sua própria salvação. A busca fútil pela redenção só poderia levar a novas frustrações e à confirmação de que penumbras juntas formam somente mais sombras. Cada ser carrega seus prazeres como tesouros únicos, e suas dores também. A translucidez alheia só faria acrescer à sua ainda menos cor e menos intensidade. Mas a resposta também não estaria em procurar em isolamentos, nas orelhas do dia intacto, impassível de interação.
Só lhe sobraria o desejo de posse. De possuir o homem como antes havia feito, irresponsavelmente. De posse sem ligação. A falha deste ato é evidente, e ululante em sua natureza. Havia uma herança em seu sangue que fluía com força: o gelo. Relacionar o homem ao gelo, à terra fria e perfumada de seus componentes ácidos, era sinônimo de desejar ater-se a algo maior que si mesma, ao invés daquilo que tinha somente o seu tamanho. Baby encontrava então a extensão de seu corpo no alheio, até o descrevia, pré-reflexivamente, como ela própria. E como uma parte pequena de algo, Baby se via do tamanho que realmente era.
Ao mesmo tempo, sua alma era incomensurável em sua diversidade. Ora era a flor, ora quem a segurava. Amedrontava-se ao se olhar no espelho. Malignamente, o que via em sua reflexão era a imagem de outra Baby a espreitá-la, escondida atrás da cadeira, atrás da porta, atrás de si mesma, atrás da orelha da página do livro, rindo diabolicamente de sua miséria. Na duplicidade do mundo, o espelho revelava mais do que se esperava. Ea a porta para a identificação do mundo. Baby, por mais de uma vez, tentou enxergar suas próprias raízes lá. A certeza obscura de que seus arquétipos eram firmes descendiam da necessidade de acreditar em algo que não a dor de viver, e desejar num tempo sem fim e sem saciar-se.
Ela seria, por ora, uma mancha trêmula, assimétrica de pulsões, amarguras, agressividades. Nãoseria exagero dizer um difuso limiar entre guerra e paz. Ainda via o girassol, e desejou sê-lo, somente para abandonar a crisálida humana, experimentar uma alma vegetal. Gostou muito de mimetizar uma ignorância que não lhe era própria, uma vez que a incompreensão é mais vasta e acalentadora que a atividade de conceber constantemente as relações pelas quais o sentir se constrói. O não-entender era Deus, a flor em sua delicadesa e era também o homem. Lera que o melhor mesmo era entender e a seguir, abdicar do entendimento. Antitética mas dialeticamente, era como ser doente sem possuir doença. Ser positivo, e ser negativamente positivo.
Baby gozaria de sua imensidão quando se desse conta que sabia o que pensou não saber. O engano de saber mais que ela própria torná-la-ia. Tornar-se-ia ela própria quando o mistério da flor se desse por si e por mais nada. E o mistério do homem se fechasse dentro de si próprio, como um embrulho. No fundo, jamais quisera compreender. Sabia da impossibilidade dessa escolha, e que emancipar-se de si própria a levaria a uma desconstrução complicada de um quebra-cabeça de peças incógnitas. Por vezes, entretanto, adivinhava os saberes do mundo com uma rústica divinação de pétalas jogadas ao vento. Ou analisava o que a posição da tinta no papel parecia querer dizer a ela, mudamente. Adivinhava como agora, quando o homem, mudo assim como veio ao lado de Baby, se levantava para ir embora e voltar sabe-se lá quando. E a Baby, só restava sua própria humanidade. (...)

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