sexta-feira, 22 de agosto de 2008

"Vento nas cordas"

Com a iniqüidade que só lhe era característica através daquela enorme tempestade que em seu peito estourava forte e altiva, vivia-se em inércia absoluta e pura, num infernal ritmo de addagio interminável. A hostilidade, elemento sempre presente nas assustadoras intempéries que o assolavam, aqui se mostrava sob a forma de uma dor aguda e pungente, trovoadas num céu cinzento. Era preciso mexer-se, para transformar aquela dor em algo ainda mais obstinado, transformá-la na própria transformação: em um sentimento belo. E, com a beleza do primeiro movimento de um universo de inércia – um gracioso gesto com o pulso, feito com cuidado e atenção – vir-se-ia a definir todo um corpo posterior de ações e conseqüências; e a vida construía-se em torno daquele início, daquele movimento reprimido e irresoluto, que poucos identificariam como um manejo de repressão. Depois, tomou-se o braço com a mão e, virando para o lado direito, abrangeu num elegante movimento o nada que o envolvia. O nada ocre que, em ondas, propiciava ao modelo uma sensação de desconforto. Neste nada, havia o corpo do modelo, que estudava o movimento por meio dele próprio – sobre o qual era depositada a fé de alcançar alguma graça excepcional, para agradar a câmera que tirava fotos do corpo, registrando passo a passo daquela geografia distinta que mudava a cada segundo, seja por passos sofisticados ou por bruscas mudanças de postura. A câmera talvez fosse o único objeto completamente imóvel do recinto azul-escuro, por onde os flashes saiam, essas partículas-ondas de luz que inundavam a decoração da sala, amalgamando aquele azul em uma turbulência cromática de luz e paralisando as poses do modelo para eternidade – que sequer eterna era: até a fotografia ser esquecida, portanto, seguia-se em frente por omissão de outras opções, mesmo quando não havia propósito nisso.
Agora um braço era erguido enquanto o outro, apontava para cima, mais abaixo da cintura, equilibrando aquelas pernas – frágeis sustentáculos – que do corpo, apresentavam o conjunto menos harmonioso para ser retratado na película honesta. Dentro de si, a revoada não manifestava sinal de decrescer. O vento era atormentador e incessante, arrastando toda sua cerne para que então, o tufão realizasse o castigo tão merecido. Toda sua carne, órgãos, fluidos, girando em descompasso do passo de dança que agora fazia. Algo semelhante à polca agora era realizado, sentia necessidade de dançar, manifestar a si próprio num movimento de alegria, alegria essa que ele desejava ser matriarca de uma série de outras futuras. Deveria mostrar-se alegre, pois a ventania dentro de si provava-se mais forte, e embora dominante, se era necessário demonstrar para a câmera que estava perfeitamente confortável. Honesta, haveria de somente registrar o virtuoso passo, o pé erguido gracejador, o corpo divertidamente inclinado e o sorriso de quem se encontra em profunda graça quando na verdade, se encontra à beira. À beira da colina, à beira do que vier no instante a seguir. Visto de dentro, não passaria de um amontoado de matéria viva rodando ad infinitum no vento-açoite, o vento que batia no seu eu mais profundo, nas fibras de sua carne, nas cordas que compunham sua matriz. Quem por ali se enveredasse, haveria de sofrer também junto de si. O vento é o sinal do porvir: eletricidade selvagem que supera o conforto doloroso e a segurança de posar sabendo que a pose de agora define à seguir.
A repetição dos mesmos movimentos também se mostrava necessária, uma vez que quase todos já haviam sido explorados pela sua sagaz inteligência física, que algures os planejara de antemão. Novamente, juntava as mãos, serpenteando os braços à volta do nada à sua esquerda, que de ocre metamorfoseava num furta-cor, pose que imaginava ter dado certo para a câmera. Às vezes as mãos, jogadas ao acaso do próximo movimento da cadeia previamente decidida, faziam os mesmos meneios ao mesmo tempo, porém de maneira tão discreta e analogamente casual, que aquilo jamais constituía uma repetição de movimentos, mas algo tão leve como o contraste do rosa do mamilo com a tez branca, na ausência da sofreguidão que por pouco tempo avermelhava sua pele. Sabia que, depois, o ensaio fotográfico chegaria a um fim e, pouco mais tarde, também a graça encontraria seu fim e seria, displicentemente, deixado de lado até por si mesmo. De feitio completamente diferente ao padrão usual, a história de seus movimentos processava-se apressadamente, de segundo em segundo, até o fim, numa expectativa constante de nervosismo. A temperança inerente ao modelo – em contraposição a inerente frustração do perfeccionista – nada mais era do que uma justificativa para seguir em frente com as poses, numa progressão pretensiosa de atitudes na câmera, cada vez mais abusadas. Suas mãos acariciavam os mamilos e a expressão era de prazer. O ensaio nada mais seria que não uma obra retratando uma vida luxuriosa. E novamente, vem a ventania juntamente de seu ódio tolhido. A paisagem de seu eu mais interno estava assolada, os pássaros agora eram violentamente jogados contra as pedras. A graça perdia espaço para os trovões. Acreditou ter chegado a seu ponto crítico.
Estariam os movimentos de seu corpo tornando-se incivilizados pela liberdade repentina que começava a preenchê-lo ou somente agora a percepção destes tornavam-se notadas, de forma que sempre o transpareciam nos atos, até mesmo os de maior discrição? – a expressividade do movimento de agora, sincronizado à pergunta, foi notável, dará certamente uma excelente fotografia – pois então, a resposta da pergunta, ao contrário de todas as outras respostas, não estava visível ou disfarçada sob roupagem nenhuma, pois ela própria é a pergunta. Sequer disfarçada de pergunta estava, já que o tom dialético e metalingüístico dela se entrega em forma de retórica. Plié – o aperto se expandia para suas partes saudáveis, ele anunciava uma possível mudança interna, o interno começava a expandir-se para fora, manter a persona ativa estava sendo custoso demais. Era um sentimento novo, algo semelhante à vertigem de expor-se. Era a vontade de expor-se que regiam seus passos e sua dança: demi-plié. Será que sua vida de esperanças infindáveis de ser também transparecia em sua face maquiada de rouge? O sonho mantinha-se escondido debaixo de sua pele, servindo de intermediário céu para a tempestade que dentro dele a tudo destruía. Por baixo do mesoderma, o sonho mantinha-se vivo; as esperanças ficavam acima dele; e mais acima, a maquiagem. O sonho sem quaisquer esperanças de ser é um aspecto intrínseco de seu organismo, a todo tempo consciente e vigilante. Gran jeté.
Ao mesmo tempo em que a intersecção entre o que se é para si e o que se é para o outro é uma abertura, ela também é esse sonho, sonho de um dia ser pleno. A plenitude encontrava-se cada vez mais perto, visto que pela quantidade de flashes já disparados indicava o fim do ensaio, o fim de sua dança e de seu estado reflexivo de profunda graça. Glissade de sous. O fim de sua vida encontrava-se perto também, já que nesta dança ela havia sido discorrida no seu monólogo mais importante: aquele realizado não só pela sua mente, mas pela comunhão total de seus tecidos e órgãos, pedaços multifacetados muitas vezes esquecidos dentro de si e que agora acordavam na forma de um furacão. Talvez a última instância da qual deveria manter-se presente é aquela onde se mostra o que se é para si para a câmera. Neste caso, ele decide posar de forma nunca antes conhecida por ele: direcionou os braços pra si, abraçando-se como se fossem partes aleatórias de um todo fragmentado. A fotografia haveria de, na sua sinceridade, mostrar aquilo que nunca mostrou, mas que agora gostaria de mostrar: aquilo que se é por dentro. Degagé. Seria visto por dentro, cortado e até mutilado, talvez aniquilado. A diferença seria gritante. Aquele homem que a cada tom de voz denotava-se uma mentira, que a cada gesto notava-se uma falsidade bestificada e que aquele sorriso que deixava quase de forma pornográfica aparecer uma tristeza haveria de nascer renovado.
O suicídio interno que se planejava dentro daquele corpo dançante – pas marchê – não era nada mais que uma fealdade. Fealdade essa que começava em seu lugar mais correto: da idéia de matar-se a si mesmo, mesmo que indiretamente, renunciar ao prazer do gozo e da fruição a troco de parar de existir como alguém que não se é durante algum tempo – pois o suicídio é bom demais para ser eterno. Poder-se-ia ficar imóvel, e calado – calar esse corpo que conta mentiras com verdades a cada flash. Evitaria, portanto, de mentir para a câmera, que honesta sendo, registrava indistintamente aquela poesia de mau gosto. Seu corpo pára. O ensaio, poucos segundos depois – oito exatamente – também pára, tendo registrado oito fotos estáticas de um corpo débil e doente que quer morrer. Elancé, pivot, demi-brás? Chega de interpretar papéis que sequer denominado por outros havia sido, e de fabricar falsas caras e gestos. A realidade haveria de cooperar para que o esconderijo não inundasse naquele mar de dores que dentro de si carregava. Por que a dor não passa, agora que não mais dança? É a vida que agora inunda o estúdio, ela penetra por entre aquele enveredamento que antes era preenchido por ventania. Os pássaros agora cantam para a chuva e para o céu.

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