sexta-feira, 22 de agosto de 2008

"Janelinha"

Goddess Bunny acorda de seu sonho rosáceo de crianças a brincar e flores, levanta-se de sua cama bonita e quente para o dia de encanto e pisca. Pestanejando, vê que há chocolate com leite em seu aparador, mantido quente por Deus somente para ser bebido pelos lábios de uma menina como ela. Bem do ladinho, flores rosas, mas menos rosas que as do sonho. Pensa que é especial, e de fato sendo, sorri para o espelho, onde uma menina devolve o sorriso com dentes à mostra. São dentes todos, menos os da frente: há somente uma janelinha que se forma entre o branco do esmalte e o preto da boca por dentro. Mas e a boca por fora? Pensa Goddess Bunny. Concluiria: é a janelinha. Ainda encostada em seu travesseiro macio, observa o que há lá fora de si própria. É um quarto todo a lhe observar: o guarda roupa, as flores rosas, o mata-borrão, o copo de água, os brinquedos, os livros, o tapete, os remédios, o aparador, os papeis desenhados, sua vitrola. Talvez até as paredes, o chão e o teto cochichem a seu respeito, quando ela se espreguiça molemente na luz do dia. Há pássaros cantando na janela. E até seria fácil tocá-los, acariciá-los como os de pelúcia guardados no alto do guarda roupa, se não fosse pelo andar difícil que ela sempre faz quando se levanta dos lençóis. Mas como queria tocá-los! E com o andar endireitado? Não, porque endireitar o andar machucava muito suas pernas, como aquela vez antes de cair doente na cama: tinha ralado o joelho ao cair de uma árvore alta, bonita como o verão lá fora. Quantas penas tinham os pássaros?
Pé ante pé, caminha duramente até o aparador, onde segura o chocolate quente e o vira todo em sua boca. Estava quente, mas não se importava com o fogo da bebida, pois tinha um fogo ainda maior anulando aqueloutro: era fogo dos seus pulmões, a respirar em batidas como às do coração, entrecortando os goles de chocolate. E o pio na janela? Forte e repentino que até assusta! É quando o chocolate quente cai pro chão e a louça se espatifa e novecentos e vinte e sete pedaços, todos iguais aos olhos de todos. A cor do chocolate se desmancha no ocre do chão a receber sol, e de repente parece jamais ter sido tocado pelo marrom do doce, desmanchado na claridade. Goddess Bunny agora fica nervosa, pois seu leite caiu todo! Como cansava esses minutos iniciais do dia, como eram difíceis de darem trégua para uma menina especial como ela. E a menina do espelho, que ria com tanto gosto? Por acaso nunca lhe aconteceu nada do tipo? E sua mãe, não lhe deu educação?
O melhor mesmo seria sentar-se e esperar a tremedeira passar. Senta-se e acaricia a colcha, reparando em como seus dedos mudaram. Notou-se porque a sombra feita dos dedos em encontro com o sol não era mais de um coelho. Talvez de um pássaro prestes a voar. Como até mesmo sentar era uma atividade penosa! Havia o relógio dorminhoco na parede, preguiçoso como ele não há: nele batiam os segundos num ritmo lento, até mais lento que o respirar da menina. Há um som lá fora, tão divertido que dá vontade de dançar! É o bom realejo, a chamar as pessoas para ler a sorte do dia. Gostá-la-ia de saber a sorte para o próximo segundo do relógio de bater sonâmbulo, porque vivia numa realidade adiantada daquela do tempo. Não agüentava o segundo que passava, pois lá estava ela antecipada ao relógio, a pensar nos balões coloridos e flores de seus sonhos. A pensar em como brincava e pulava e ria. A pensar no gosto do algodão doce a derreter na boca e como a luz do parque cortava as nuvens de açúcar de maneira engraçada.
E para ir ao banheiro nas horas de necessidade? A facilidade desta menina é que também era especial na hora de urinar. Para isso, o fazia de pé no quarto, ali mesmo, na comadre comodamente descansada embaixo da cama. Não havia necessidade de ir ao banheiro, bastava urinar no bico da comadre, que é muito parecido com o usado por sua mãe para fazer o café, na época em que ainda podia ir até a cozinha sem maiores problemas. Mas tudo havia ficado muito complicado desde o verão passado. Há mais ou menos um ano atrás. Goddess Bunny havia caído enferma na cama. E essa cama não é tão quente e aconchegante como a de agora: era de um metal frio, de arrepiar a qualquer um. Preferiu não guardar muitas lembranças sobre essa época, mas havia uma particularmente triste. Certa vez, precisou tirar uma espécie de água da coluna. Se o doutor a visse, poderia dizer finalmente para sua mãe e para seu pai e para sua avó e para seu avô e para sua tia e para seu tio o porquê de tantas dores, de tantas torções. Doeu como nunca imaginou doer. Doeu tanto que a simples lembrança a fazia molhar a cama, de noite, na hora dos pesadelos a lembrando de seu medo de agulhas. Não é à toa que as agulhas são tão horríveis, pensa Goddess Bunny, até o jeito que a palavra “agulha” soa é feio. Quereria ela tanto não mais se lembrar dos brancos do hospital. Decidiu viver pelas cores do dia, das árvores, dos seus sonhos. E pelas cores vive: que seria de tudo sem o giz-de-cera a pintar sem descanso o dia que lá fora de tudo acontece?
Ainda sentada na cama, Goddess Bunny pensava nas cores do dia: roxo ou lilás? O dia se aproximava do cinzento, mas o cinzento era uma cor proibida – preferia qualquer coisa ao cinzento! Talvez até a morte: que seria morrer? Sua mente pensava na morte como quem pensa no almoço. A morte vinha e... Ia embora. Era algo que não precisava entender muito bem, se vivia e se passava, e agente se conformava. Agora o realejo vai embora, ouve-se sua música diminuindo o volume, indo embora. E a morte, continuava. Teimosa! Goddess Bunny se arrepiava. Sua primeira e única experiência com morte foi quando viu um pardal caído em seu quintal. O pardal dava pios fracos, e estava coberto por aqueles seres horríveis! As formigas. Horríveis, sim. O comiam todo, e sequer havia morrido. A pressa era tanta que nem a morte poderia acontecer sem que antes a apressassem. Mas até pra morrer se tinha pressa? Goddess Bunny tinha pressa de muita coisa, mas de morrer, não. Não tinha pressa daquilo que não entendia, sequer e muito menos daquilo que não tinha pressa de entender. E o relógio? Tinha pressa de alguma coisa? A água tinha pressa de ser bebida. O giz-de-cera, de ser usado nalgum desenho belo. As roupas, de serem usadas, rasgadas até. Das coisas que Goddess Bunny mais tinha pressa, era de brincar lá fora em época de sol. Mas a pressa arruinava a tudo. Goddess Bunny mesmo admitia que sua pressa a prejudicava, porque se lembrava de seu período de escola.
A escola foi uma fase tão boa que talvez seja mesmo por isso que durou tão pouco. Era triste, mas era verdade. Foi talvez o melhor momento de sua vida, estar entre quem gostava e ser gostada. Lá as pessoas tinham o seu tamanho, a sua idade. Até o brilho dos olhos era o mesmo. Passava o tempo aprendendo a magia das letras, e o feitiço de juntá-las em uma palavra. E a epifania de juntá-las numa frase. Pulava como quem havia descoberto a corda de pular corda ontem. E as maçãs do recreio eram mais vermelhas. A água, mais gelada. Não sabia como, e não sabia o porquê, mas a vida no colégio parecia mais frenética, mais leve, como o vento que bate no rosto de quem anda de carro com a cara pra fora, desrespeitando os avisos de mamãe e papai quanto a andar assim. Mas que dor quando a corda batia no rosto! A falta de sincronia com o dançar da corda era como o desritmo do choro de quem a levava no rosto, sem dó. Mas tudo logo passava rapidamente, olhava-se pro céu e dizia: Olha a madrinha lá no céu! E tudo voltava a ser belo e rápido. O sinal era o indicativo que tudo acabava: que tristeza! Mas a volta para casa indicava também um jantar bastante delicioso, que a fazia salivar de fome. Seus colegas estavam destinados a esse mesmo futuro apetitoso de massas e carnes e batata frita. E sobremesa após a comida.
Quem dera Goddess Bunny pudesse voltar a comer o que queria, na hora que quisesse. Descobria na vida uma fonte de descobertas melancólicas: tudo estava um segundo aquém dela mesma. Como era estranho, viver adiantada. Viver na frente do relógio, do chocolate, do guarda roupa. Esperar pelo que? Não entendia bem, esperava por algo a acontecer. Algo a se encantar... Mas vinha o sono, ladrão maligno, e lho roubava o acontecimento muito antes dele próprio acontecer em plenitude, deixando-a em desamparo com doída freqüência. Quem me dera saber ler! Leria todos os livros da sala. Inclusive os que não têm desenhos, pois não sou preconceituosa como as pessoas que aparecem sendo presas no jornal da noite. Nem mais se lembrava do jornal da noite, essa menina-Goddess Bunny. Talvez assim fosse melhor, pra que precisava do jornal? Para ler acontecimentos quando o dela, o mais importante de todos, demorava pra vir? Talvez ele venha depois de mil trezentos e noventa e uma voltas daquele ponteiro maior. Ou mil cento e dezenove? Não sabia. Sequer tinha noção da relativa imensidão presente no número mil. Mas quem tem?
Já fazia tempo, o dia passava, tinha sono... Fui vencida. Um sono tão forte que veio e não pediu nem permissão pra entrar em Goddess Bunny. Custava bater na porta? O sono era uma coisa boa: anunciava que um momento bom se aproximava, digno do colorido mais belo, da risada mais gostosa. É que o sono antecedia o sonho, essa realidade de tempos dourados que duravam o quanto quiséssemos enquanto pudéssemos não ter as rédeas de nós mesmos. E não seria bom se não pudéssemos nos controlar sempre? Fazer tudo o que gostássemos? Fazia planos para seu sonho: esta noite sonharia que conversaria com seus amigos de escola, que correria com eles até as colinas mais altas, para que a visão do dia que acaba fosse especial. Fosse memorável e pegasse emprestado o dourado do crepúsculo para seu sonho. Para sua vida e também para suas pernas: era de dourado que precisavam. Neste mesmo sonho, rolariam do topo da colina para mais abaixo, onde se acumulavam o resto das crianças, aos montes, todas risonhas e pueris. E ainda mais! Cairiam todas elas de cansaço sobre suas próprias pernas, e ninguém sentiria mais dor que a própria do impacto de despencar sobre seu próprio peso. O céu da manhã seria como o de uma tela feita de doces que também é tinta a colorir o dia de todos. Pacientemente, esperaria por mais céus de outras manhãs, doces como só aqueles que Goddess Bunny poderia imaginar. Esperaria... Havia a pressa, mas esperar é preciso. É preciso mais que esperar pelo momento de seu sonho acontecer. Dentre todos, aquele sonho qual uma estrela que cai do céu toda noite que sua perna despontava em dor era o mais persistente. Ele persistia incomodamente e Goddess Bunny não entendia. Mas aceitava, o sonho era uma realidade que ainda estava por vir: se escondia entre os ponteiros do relógio que dormitava sem pressa de nada. O sono... Já estava por vir. E como seria difícil dormir com a claridade do dia lá fora... Goddess Bunny se levanta, e tortuosamente anda seu caminho de dores até a janela. Desta posição, percebe o dia lá fora. O dia acontecia sem que ninguém soubesse, despercebido a todos... E como era bonito. Era como um sonho, estar lá fora! Lentamente, se desequilibra... E escorrega de sua janelinha. Goddess Bunny agora dorme dentro de seu sonho e é feliz, como se nunca houvera sido em toda sua vida de duzentos e sessenta e sete anos.

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