“Carrego comigo
Há dezenas de anos
Há centenas de anos
Um pequeno embrulho”
C.D.A.
Havia uma caixa. Havia uma caixa, mas que não estava no meio do caminho, e sim, era ela o caminho. Em absoluto, este caminho é uma transição rumo àquilo que nos é desconhecido em todas as instâncias. É uma porta, objeto esse por completo mutável, metamórfico e mágico. Por trás da caixa-porta o que encontramos? Talvez o instante que será, mas que agora é, e em breve terá sido. Há um fluxo onisciente que, de rompante, atravessa a porta-caixa translúcida e que é o instante-já que é e agora era e nos atinge, secamente. Este fluxo já nos é conhecido a priori, acredito eu e tantos outros por aí. Além dele, também já nos é de conhecimento a priori o próprio material do qual a caixa-porta é feita. É algo terrivelmente próprio. Há nesta caixa, adianto-vos, algo indescritível. Portanto, o certo quando contemplamos tal objeto não seria fazermos deferência, idolatrar e contemplar aquilo mágico que ao passo que nos é conhecido, é desconhecido? E este mistério: como explicar aquilo que ao passo que conduz, confina? O mistério em si: é o conteúdo da caixa. A caixa possui o mistério. E a caixa é minha.
Seria então o meu mistério dentro da caixa, enfermo e sofrido qual as desgraças de Pandora? Talvez lá contivesse cores, das mais belas. Talvez lá contivesse A cor? Talvez um segredo? Não que o mistério necessariamente se remeta ao segredo, uma vez que somente o mistério emerso, flutuante, que erra na rasura de tudo, é o segredo. E caso fosse carne, carmesim e suculenta, como as delícias que nela habitam? E se a resposta para o conteúdo da caixa fosse a resposta de si mesma? Resposta: o conteúdo da caixa é... Simplesmente meu. E que jamais haja confusão entre o ter e o ser, neste aspecto tão intocado e albatroz. Porque mesmo dentro de meu mundo, de meu mistério, não admito onipotência sequer onisciência sequer qualquer vestígio daquele ser o qual foi extinto de minha vida. Aquele das letras maiúsculas. As letras maiúsculas, por motivo de princípios, foram expurgadas a tiros de canhão de meu mistério. A contemplação inerente à admiração limita-me a ignorar que a letra maiúscula seja motivo de força maior para adestrar minha paixão. Não, não escondi Deus dentro da caixa. Jamais me perdoaria por extinguir o Pai de todos a quem dele nasceram. Entendo da ausência paterna. E também entendo o quanto isso contribui para que este mistério seja apatriado.
Este mistério, por excelência, é iconoclasta. E para tanto, não devo jamais considerar-me ídolo, muito embora o confinamento, por trás da cortina de sua definição, carregue teor ególatra. Ignoremos isso e fingimos que dentro de minha caixa o universo seja um degradê ao inverso, de forma que o branco seja o preto, o tudo seja o nada, o eu seja o tu. Mas ainda assim, o mistério é meu. De mais ninguém, repito-o e louvo-o gritando aos céus: é meu e de mais ninguém! Gozo-o por inteiro e sequer o divido com meus devaneios. A princípio, dir-se-ia maravilhas da caixa. Uma caixa só minha! Poderia guardar o que quisesse lá dentro. Mas que poder era esse? Estava eu preparado quando de todos os corpos do universo tangível, escolhi justamente aquele que não lhe pertencia? Pergunto-me, olhando ao espelho: vivo na caixa a qual possuo? Vivo em meu mistério? Já lho sei: não o sou, ele é um outro, diferente de mim em essência. Seria possível eu habitar DENTRO de algo que não se pode tocar, tanger?
Independente de minhas questões, retorno ao mistério, que ao passo que é posse minha, é um caminho. Meu mistério é um caminho em direção a algo que não sei explicar. E ninguém o faria melhor ou pior que eu. É como se ele compusesse um corpo, longilíneo e lemniscato, que em si mesmo se envereda, se entrecruza e, num nó, o eleva a uma complexidade quase forjada, esse embuste-meu que, mais que tudo, confunde aquilo que por natureza deveria ser simples. Aquilo que não se explica é simples, mas não é assim que o sinto, e sinto muito por isso. E se caso eu, numa repentina epifania de esclarecimento, o entendesse de alma e carne? Saberia reconstruir-me frente àquilo que me destruiu? Conheci uma mulher que, sustentada somente com os dedos do pé, roçou os dedos no mistério próprio. Temo, assim como ela, destruir-me e me perder na reconstrução. Ou mesmo na construção.
Lembro-me agora de um de seus artifícios para tal: imaginar uma figura de auxílio. E se eu fizesse exatamente o mesmo? Mas por quê?! Por que eu estou buscando por auxílio se a caixa é minha, eu possuo a chave para adentrá-la, eu possuo os pés para andar pelo seu caminho, eu possuo a técnica de natação ancestral para ir de encontro ao fluxo que nele impera altivo e inflexível? Suspeito que este medo me seja primordial. Vou tomar um café. Tomo o café e ainda temo inexplicavelmente aquilo que não sei explicar. Não, não sei o que explicar. A situação abandonou a condição de engodo assim que a caixa se abriu e o fluxo passou, levando o instante-já tão necessário ao meu entendimento. Tentei pegá-lo do ar, do éter, mas não o consegui. E se meu auxílio viesse com o objetivo de parar o fluxo? Prestidigitador que sou, quebranto meu status quo em um trilhão de peças infinitesimalmente pequenas. Agora não obedeço mais a qualquer lei. Sou um anárquico equívoco mágico que, posseiro do próprio mistério, deixou-se levar por ele e se abandonou à desconstrução última: a própria. Estou livre de minha carne e de minha alma, e decido neste momento encarnar a forma de uma flor, de um áporo labiríntico, parasita. Que estranho essa sensação, esses sons, ressonância de atonalidade desconhecida. Pergunto-me agora (ou sempre me questionei?): estou no cerne da matéria?
Essência mutável que sou, abandono as rédeas de mim mesmo e alcanço o sumo de tudo. Bebo-o através da boca que não mais tenho mas que a crio como num estralo de dedos. Meus lábios se melam todos. Roçam neles coisas indescritíveis. E agora, tudo se acabou, eu bebi meu mistério, na tentativa de desvendá-lo. De uma forma ou de outra, isto estava para acontecer há milênios, eu, velho de 2000 anos de idade, já o previa e já me encantava distante de mim mesmo. Muito provavelmente, é o objetivo de todo ser ser engolfado em determinado momento de sua vida pelo seu próprio mistério. Este momento é o que antecede à descoberta de si mesmo, dado viciado que opera sob o signo da imparcialidade.
A caixa? Deixe-a para trás, não mais preciso dela. Ei-la, abandonada próxima de um rio, poluindo-o com seu fluxo de realidade.
A porta? Ei-la aqui, ali, ainda aferrolhada no seu batente, roída, destruída, vilipendiada. E assim permanecerá a partir de agora.
A água do rio poluída pelo fluxo o qual jorrava da porta-caixa? Eu a bebo, homem que sou, e me refresco nela sob a postura de alguém superior, transcendental, com o menosprezo de quem não a vê mais como mistério encantador, uma vez que já conheço sua estrutura íntima e ainda digo: “não és mais que resto”.
Não estou vazio. Não estou sozinho. Pois anda comigo. Algo indescritível.
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
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