quinta-feira, 18 de setembro de 2008

“A caixa de Drummond”

“Carrego comigo
Há dezenas de anos
Há centenas de anos
Um pequeno embrulho”
C.D.A.



Havia uma caixa. Havia uma caixa, mas que não estava no meio do caminho, e sim, era ela o caminho. Em absoluto, este caminho é uma transição rumo àquilo que nos é desconhecido em todas as instâncias. É uma porta, objeto esse por completo mutável, metamórfico e mágico. Por trás da caixa-porta o que encontramos? Talvez o instante que será, mas que agora é, e em breve terá sido. Há um fluxo onisciente que, de rompante, atravessa a porta-caixa translúcida e que é o instante-já que é e agora era e nos atinge, secamente. Este fluxo já nos é conhecido a priori, acredito eu e tantos outros por aí. Além dele, também já nos é de conhecimento a priori o próprio material do qual a caixa-porta é feita. É algo terrivelmente próprio. Há nesta caixa, adianto-vos, algo indescritível. Portanto, o certo quando contemplamos tal objeto não seria fazermos deferência, idolatrar e contemplar aquilo mágico que ao passo que nos é conhecido, é desconhecido? E este mistério: como explicar aquilo que ao passo que conduz, confina? O mistério em si: é o conteúdo da caixa. A caixa possui o mistério. E a caixa é minha.
Seria então o meu mistério dentro da caixa, enfermo e sofrido qual as desgraças de Pandora? Talvez lá contivesse cores, das mais belas. Talvez lá contivesse A cor? Talvez um segredo? Não que o mistério necessariamente se remeta ao segredo, uma vez que somente o mistério emerso, flutuante, que erra na rasura de tudo, é o segredo. E caso fosse carne, carmesim e suculenta, como as delícias que nela habitam? E se a resposta para o conteúdo da caixa fosse a resposta de si mesma? Resposta: o conteúdo da caixa é... Simplesmente meu. E que jamais haja confusão entre o ter e o ser, neste aspecto tão intocado e albatroz. Porque mesmo dentro de meu mundo, de meu mistério, não admito onipotência sequer onisciência sequer qualquer vestígio daquele ser o qual foi extinto de minha vida. Aquele das letras maiúsculas. As letras maiúsculas, por motivo de princípios, foram expurgadas a tiros de canhão de meu mistério. A contemplação inerente à admiração limita-me a ignorar que a letra maiúscula seja motivo de força maior para adestrar minha paixão. Não, não escondi Deus dentro da caixa. Jamais me perdoaria por extinguir o Pai de todos a quem dele nasceram. Entendo da ausência paterna. E também entendo o quanto isso contribui para que este mistério seja apatriado.
Este mistério, por excelência, é iconoclasta. E para tanto, não devo jamais considerar-me ídolo, muito embora o confinamento, por trás da cortina de sua definição, carregue teor ególatra. Ignoremos isso e fingimos que dentro de minha caixa o universo seja um degradê ao inverso, de forma que o branco seja o preto, o tudo seja o nada, o eu seja o tu. Mas ainda assim, o mistério é meu. De mais ninguém, repito-o e louvo-o gritando aos céus: é meu e de mais ninguém! Gozo-o por inteiro e sequer o divido com meus devaneios. A princípio, dir-se-ia maravilhas da caixa. Uma caixa só minha! Poderia guardar o que quisesse lá dentro. Mas que poder era esse? Estava eu preparado quando de todos os corpos do universo tangível, escolhi justamente aquele que não lhe pertencia? Pergunto-me, olhando ao espelho: vivo na caixa a qual possuo? Vivo em meu mistério? Já lho sei: não o sou, ele é um outro, diferente de mim em essência. Seria possível eu habitar DENTRO de algo que não se pode tocar, tanger?
Independente de minhas questões, retorno ao mistério, que ao passo que é posse minha, é um caminho. Meu mistério é um caminho em direção a algo que não sei explicar. E ninguém o faria melhor ou pior que eu. É como se ele compusesse um corpo, longilíneo e lemniscato, que em si mesmo se envereda, se entrecruza e, num nó, o eleva a uma complexidade quase forjada, esse embuste-meu que, mais que tudo, confunde aquilo que por natureza deveria ser simples. Aquilo que não se explica é simples, mas não é assim que o sinto, e sinto muito por isso. E se caso eu, numa repentina epifania de esclarecimento, o entendesse de alma e carne? Saberia reconstruir-me frente àquilo que me destruiu? Conheci uma mulher que, sustentada somente com os dedos do pé, roçou os dedos no mistério próprio. Temo, assim como ela, destruir-me e me perder na reconstrução. Ou mesmo na construção.
Lembro-me agora de um de seus artifícios para tal: imaginar uma figura de auxílio. E se eu fizesse exatamente o mesmo? Mas por quê?! Por que eu estou buscando por auxílio se a caixa é minha, eu possuo a chave para adentrá-la, eu possuo os pés para andar pelo seu caminho, eu possuo a técnica de natação ancestral para ir de encontro ao fluxo que nele impera altivo e inflexível? Suspeito que este medo me seja primordial. Vou tomar um café. Tomo o café e ainda temo inexplicavelmente aquilo que não sei explicar. Não, não sei o que explicar. A situação abandonou a condição de engodo assim que a caixa se abriu e o fluxo passou, levando o instante-já tão necessário ao meu entendimento. Tentei pegá-lo do ar, do éter, mas não o consegui. E se meu auxílio viesse com o objetivo de parar o fluxo? Prestidigitador que sou, quebranto meu status quo em um trilhão de peças infinitesimalmente pequenas. Agora não obedeço mais a qualquer lei. Sou um anárquico equívoco mágico que, posseiro do próprio mistério, deixou-se levar por ele e se abandonou à desconstrução última: a própria. Estou livre de minha carne e de minha alma, e decido neste momento encarnar a forma de uma flor, de um áporo labiríntico, parasita. Que estranho essa sensação, esses sons, ressonância de atonalidade desconhecida. Pergunto-me agora (ou sempre me questionei?): estou no cerne da matéria?
Essência mutável que sou, abandono as rédeas de mim mesmo e alcanço o sumo de tudo. Bebo-o através da boca que não mais tenho mas que a crio como num estralo de dedos. Meus lábios se melam todos. Roçam neles coisas indescritíveis. E agora, tudo se acabou, eu bebi meu mistério, na tentativa de desvendá-lo. De uma forma ou de outra, isto estava para acontecer há milênios, eu, velho de 2000 anos de idade, já o previa e já me encantava distante de mim mesmo. Muito provavelmente, é o objetivo de todo ser ser engolfado em determinado momento de sua vida pelo seu próprio mistério. Este momento é o que antecede à descoberta de si mesmo, dado viciado que opera sob o signo da imparcialidade.
A caixa? Deixe-a para trás, não mais preciso dela. Ei-la, abandonada próxima de um rio, poluindo-o com seu fluxo de realidade.
A porta? Ei-la aqui, ali, ainda aferrolhada no seu batente, roída, destruída, vilipendiada. E assim permanecerá a partir de agora.
A água do rio poluída pelo fluxo o qual jorrava da porta-caixa? Eu a bebo, homem que sou, e me refresco nela sob a postura de alguém superior, transcendental, com o menosprezo de quem não a vê mais como mistério encantador, uma vez que já conheço sua estrutura íntima e ainda digo: “não és mais que resto”.
Não estou vazio. Não estou sozinho. Pois anda comigo. Algo indescritível.

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